Mário Maestri*
Domenico Losurdo e sua biografia - “Stalin: história crítica de uma legenda negra”- foram consagrados no Brasil, o primeiro como intelectual marxista iconoclasta e a segunda como sua brilhante obra revisionista de mitos históricos consolidados. Não era para menos. O homem propôs fatos totalmente desconhecidos, todos contribuindo para resgatar o papel gentil e progressista do “Pai dos Povos”. Propõe ou sugere, por exemplo, campanha terrorista contra a URSS -assassinatos, sabotagens de trens, etc.- organizada por Trotsky desde o exterior. Nada, portanto, mais justo do que o massacre de algumas dezenas de milhares de comunistas internacionalistas na URSS pelo estalinismo!
Em quem o Losurdo apoia essa revelação capaz de lançar por terra tudo o que já foi até hoje dito e escrito? Nos arquivos do PCUS, agora à disposição dos historiadores? Nos papéis de Trotsky, depositados na Universidade de Harvard? Em algum fundo documental apenas descoberto? Nas memórias de algum terrorista trotskista? Não. Nesse caso, Domenico Losurdo apoia-se essencialmente em um livro do jornalista italiano Curzio Malaparte, "Tecnica Del Colpo di Stato", publicado em 1931, em Florença, na Itália fascista! E se esquece, sobretudo, de dizer que o autor, um oportunista e farsante de sucesso, como “fascista della prima ora”, participara da Marcha sobre Roma, e prestara a seguir importantes serviços aos camisas negras italianos. E o uso oportunista de fontes tão confiáveis como bilhete premiado vendido na porta do banco para senhora idosa, não é um deslize [nesse caso gravíssimo] na biografia escrita por Losurdo, espécie de lixeira historiográfica. É a norma. Se a moda pegar, mui logo teremos trabalhos, citando o Olavinho, reconhecidos como obras historiográficas em nosso cada vez mais triste país!
Losurdo, assassino de Memórias, o “Caso Tukatchevski”
Em 12 de junho de 1937, era executado o marechal Mikhail Tukatchevski, grande herói da Guerra Civil. Era acusado de conspiração “fascista-trotskista-direitista”. Iniciavam-se fatos de consequências terríveis para a URSS. Losurdo resolve a questão dramática em sete parágrafos, sobre a execução de Tukatchevski e de “numerosos outros” oficiais. E bota “numerosos” nisso, Losurdo! Dois outros marechais, oito dos nove almirantes, uns setecentos generais, em geral membros do Comitê Central. Mais de 15.000 oficiais assassinados e talvez 40 mil na prisão! Onda de suicídios varreu a oficialidade do Exército Vermelho quando dos sucessos.
Losurdo banaliza o tragédia, dedica-se a inocentar Stálin e a sugerir responsabilidade política de Trotsky!
Segundo ele, em 1937, o presidente da Tcheco-Eslováquia informara os franceses de conspiração de Tukatchevski com a Alemanha nazista. A GPU informara Stalin, que ordenara, em um vapt-vupt, o desventramento do Exército Vermelho. Losurdo apoia a tese da conspiração em declarações de Churchill e Hitler! E balbucia que “dúvidas permanecem” sobre ter ela ocorrido, o que justificaria a carnificina! E já zombando de seus leitores, afirma que os oficiais restantes “expunham com franqueza as suas opiniões […] sem hesitar em contradizer o líder supremo […].” Ninguém temeria terminar no círculo ártico ou com um tiro na nuca!
Abertos os arquivos soviéticos e alemães, neca sobre a conspiração multitudinária: apenas informações documentais sobre a falsificação nazista de documentos relativos à “traição”, ao igual do também feito pela polícia política estalinista. Cada um por suas razões.
Losurdo maravilha-se que não foi a sede de sangue de Stálin que levou à mortandade, mas razões políticas: possivelmente eliminar oficiais bolcheviques de prestígio que combateram sob as ordens de Léon Trotsky. Oficiais que, entre eles, sussurrariam críticas, que não podiam discutir em um partido comunista aterrorizado. A sorte da família Tukachevsky foi sinistra, como a de tantos outros oficiais.
Oito décadas passadas, nossa homenagem a esses soldados da revolução proletária, que não merecem ter suas memórias enxovalhadas por um assassino de memórias.
Stálin, as fontes Limitadas e Desqualificadas de Losurdo
“Dê-se o trabalho de abrir a parte das referências dessa obra de Losurdo, são mais de 30 páginas [sic] de referências. Grande parte dos autores e autoras trabalhados por Losurdo são respeitáveis trotskistas incluindo o principal biógrafo de Trotski.” Crítica à postagem de 23/12.
Conheci acadêmico inglês que escrevia sobre Gramsci e não lia em italiano. Para ele, estava tudo em inglês. Por educação, não retruquei. Losurdo deve ser primo do exótico gramscista. Não há nada na biografia de “Stalin” em russo!
É ainda mais gritante a ausência de referência a arquivos. A abertura dos centros de documentação da antiga URSS e novas pesquisas arquivais têm revelado muito. Contamos também com documentação primária on-line e edições confiáveis de documentos.
Losurdo não gosta de arquivo e quase não usa documentação primária editada. Ignora depoimentos incontornáveis de raros trotskistas que escaparam ao massacre estalinista - Victor Serge, Ante Ciliga, etc. Não cita “trotskistas” referenciais - Jean-Jacques Marie, Pierre Frank, Ernest Mandel, Pierre Naville, James Canon, etc. Da obra monumental de P. Broué, usa apenas a biografia de Trotsky. E, acredite quem quiser: não utiliza a trilogia canônica de Isaac Deutscher! Nada de Kamenev, nada de Zinoviev e … muito, mesmo, de Bukharin, o amigo do capitalista e do camponês gordo da NEP! Neca, da tese icônica de Preobrajesnki, o economista da Oposição de Esquerda.
Losurdo usa farta e positivamente autores anti-comunistas. Citamos Curzio Malaparte. Mais significativo é o uso amplo de Nicolas Werth, um dos autores do “Livro negro do comunismo”, com três trabalhos na bibliografia - Rosa e Marx só têm um! François Furet, energúmeno da tribo de Werth, também diz: - Presente. Robert Conquest, seis obras - o homem trabalhou em serviço inglês anticomunista e era amiguinho da Thatcher e de Bush II. Para não falar de Hanna Arendt - oito trabalhos!
A bibliografia é limitada quantitativamente e desqualificada qualitativamente. As citações dos livros apenas na bibliografia -e não no pé de página- ajudam a esconder a enorme pobreza bibliográfica.
O esforço de reabilitação do estalinismo não ultrapassa o nível de revisão bibliográfica superficial e a-crítica, com conclusões arbitrárias. Um ensaio ideológico, jamais uma obra científica. Essas fontes capengas e envenenadas apoiam reinvenção da história, para ataque ao marxismo revolucionário, em defesa do Estado burguês [“libertação nacional”]. Questões para os próximos capítulos.
* Mário Maestri é Historiador.