Mário Mestri*
Em 29 de novembro, o psolista Leonel Brizola Neto apresentou
à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro “Moção de Louvor e Reconhecimento” à
República Democrática da Coréia. Apoiava
sua proposta no “esforço de seu povo e de seu Máximo Dirigente, Excelentíssimo
Senhor Kim Jong-Un, na luta pela reunificação da Coréia e a necessária busca da
paz mundial". A declaração foi entregue ao embaixador daquele país e
publicada na agência estatal de notícias norte -coreana. A iniciativa teve a quase nula repercussão
habitual das inumeráveis outras moções de louvor apresentadas pelos édiles
cariocas e nacionais, que homenageiam do time de várzea de seu município ao
pedicure do vereador proponente.
No dia 12, o jornal O Globo execrou a moção, servindo-se
dela para mais um dos incessantes ataques ao Estado e à sociedade
norte-coreana, apresentados como a quinta-essência da maldade do socialismo
consubstanciada no pequeno, cercado e
atacado país. Imediatamente, em forma disciplinada, os vereadores do PSOL da
Cidade Maravilhosa se dissociaram de Brizola Neto, criticando a moção que não
fora “construída coletivamente pela bancada” e, portanto, não representaria a
“posição do partido”. Parlamentares psolistas de todo o Brasil juntaram-se à
“malhação do Judas” brizolista.
Marcelo Freixo condenou a declaração do colega de partido
propondo que, para ele, a “democracia” é
“um princípio inegociável”. O que causa espanto, já que, há poucos dias, aquele
prefeiturável votou a favor do “pacote Mouro”, junto com os deputados golpistas,
aprovando medidas repressivas, anti-populares e nada democráticas. No passado
mês de agosto, registrou também ausência de purismo democrático quando de
debate quase amoroso com a Bruxa do Impeachment.
Fernanda Melchionna, que sonha com a prefeitura de Porto
Alegre, companheira de Freixo na Câmara Federal e no apoio ao “Pacote Moro” e
ao golpismo, em 4 de dezembro passado,
fez igualmente cara feia para Brizola Neto e a Coréia do Norte. Luciana
Genro, companheira de Melchionna no MES, rejeitou altissoante qualquer apoio à
RDC, por falta de democracia. Porém, no passado recente, ela negou o golpe de
2016, apoiou a prisão de Lula e rasgou elogios à Lava Jato e ao Juiz das
Camisas Pretas. Tudo mui pouco democrático.
Nós temos a força!
A República Democrática da Coréia nasceu de longa guerra de
libertação contra a bestial ocupação colonial japonesa -1910-, dirigida pelo
Partido dos Trabalhadores da Coréia. A ocupação estadunidense do sul da
península e a formação de governos militares títeres levou à chamada Guerra da
Coréia (1950-53). As tropas estadunidenses, no comando de coalisão
internacional, realizaram arrasamento geral do norte da península. Para tal,
serviram-se de quantidades monstruosas de Napalm. A seguir, organizaram assédio
ininterrupto ao país, servindo-se dos governos ditatoriais sul-coreanos que se
sucederam até fins dos anos 1980.
O apoio que a RDC recebeu inicialmente da URSS e da China
esmoreceu após a restauração capitalista na China, desde 1979, e na Rússia, em
1990. Então, a situação do país atacado tornou-se dramática. Não contava mais com a proteção cabal dos
grandes vizinhos e não podia acompanhar a corrida armamentista, devido à sua
pequena dimensão territorial e populacional.
A RDC possui uns 26
milhões de habitantes e 120 mil km2, ou seja, menos da metade do do Rio Grande
do Sul. O pequeno país livrou-se de invasão do imperialismo armando-se com a
bomba atômica. Seu programa nuclear teria iniciado quando da dissolução da
URSS, em 1989-90.
Em 2006, com os primeiros testes atômicos norte-coreanos, o
imperialismo estadunidense impôs através da ONU, com a aquiescência da China e
da Rússia, terrível bloqueio econômico à RDC, com o objetivo de obrigá-la a
desarmar-se. Com isso, poderia implementar intervenção militar, ao igual do que
no Iraque e na Líbia, sobretudo.
As sanções votadas e aprovadas sucessivamente interromperam
ou restringiram drasticamente o comércio internacional norte-coreano de
petróleo, de carvão, de bens tecnológicos, de alimentos, de peixes, etc.
Proibiu-se que os norte-coreanos trabalhassem no exterior. Diante da
impossibilidade de intervenção militar em uma potência [mesmo pequena] atômica,
o imperialismo procura fomentar crise econômica que leve ao desmoronamento
interno das instituições coreanas, através de mais uma -“revolução de veludo”.
O imperialismo procura restaurar a produção capitalista,
reduzir o país à situação semi-colonial, aproximar-se das fronteiras chinesas.
Os USA possuem 28.500 soldados e ogivas nucleares
estacionados na Coréia do Sul. Assusta também aos yankees, como ao Japão, uma reunificação da
península, sob governo autônomo, que criaria uma grande potência na área,
dispondo de armas nucleares. A China e a Rússia vêem também com desagrado o
poder atômico da RDC e o desequilíbrio regional que a unificação da península
criaria, com o surgimento de nação de quase oitenta milhões de habitantes e uma
economia avançada. Com o acirramento da ofensiva dos USA contra a Rússia e a
China, o bloqueio econômico à RDC tem sido contornado relativamente através do
contrabando. A Coréia do Norte já declarou que compreenderá, como declaração de
guerra, a tentativa dos USA de bloquear seu comércio marítimo.
Esquerda Faz de Conta
Sob a desculpa de dissociarem-se com o governo encabeçado
por por Kim Jong-Un, esquerdista como
Marcelo Freixo, David Miranda, Sâmia Bomfim, Fernanda Melchionna, Luciana Genro
aderem à campanha imperialista e neo-colonialista pela destruição da RDC. Posam
de vestais ultra-democratas para bajular o eleitorado de classe média e
média-alta. No passado, essa“esquerda faz de conta” apoiou os fundamentalistas
islâmicos no Afeganistão; a restauração capitalista na URSS, na Iugoslávia, nos
Estados operários do Leste Europeu, etc., propondo lhe serem desagradáveis os
seus líderes e regimes autoritário e burocráticos.
Defendiam, assim, a inferioridade de uma sociedade
socialista, governada por ordem burocrática, diante da superioridade da
exploração capitalistas, no melhor dos casos, sob as aparências da democracia
burguesa. Democracia formalmente representativa da qual dependem suas
mordomias. Muitos desses transfugas do socialismo se definem ou se definiram no
passado de trotskista. Apesar de León Trotsky ter dito sapos e lagartos dos
“pequenos-burgueses” que apoiavam a destruição da URSS, sob a escusa de atacar
a ditadura estalinista. Em defesa do marxismo, seu último e cintilante livro,
antes de ser morto a mando do estalinismo,
foi escrito precisamente contra essa rendição oportunista ao grande
capital.
Nos últimos anos, essa mesma esquerda que o capital gosta
tem apoiado vivamente ataques imperialistas, não raro genocidários, no Iraque, na Líbia, na Síria e agora no Irã,
por torcerem o nariz aos regimes dessas nações, abraçando a retórica
justificativa dos agressores. Em geral,
propõe a existência de movimentos revolucionários populares -quando não
socialistas- lutando contra aqueles governo. Movimentos revolucionários que
ninguém vê ou conhece, que são logo esquecidos quando os Estados e as nações
ofendidas são destruídas. Fecham porém os olhos às tropas terroristas apoiadas
e financiadas pelo imperialismo e seus aliados.
No mesmo sentido, o revolucionário russo propunha a
obrigação incontornável da defesa incondicional das nações e dos Estados
atacados pelas potências imperialistas, seja qual seja seu regime - ditatorial,
feudal, etc. Em setembro de 1937, em entrevista, propôs, como exemplo, o
imperativo do apoio ao Brasil de Getúlio Vargas, que na época ele via como
semi-fascista, contra um hipotético ataque imperialista da democratíssima Inglaterra.
Essa foi sempre posição do marxismo revolucionário e da Internacional
Comunista, até sua estalinização.
Nada de Beijo na Boca
Alguns intelectuais e democratas honestos, pequenas
organizações políticas como o PCB e o
PCO, sítios de análise política como o Duplo Expresso saíram em defesa do
direito à auto-determinação da RDC diante dos ataques do imperialismo, apoiados
pela grande mídia. Dentre essas poucas vozes dissonantes, houve aquelas que
foram mais longe e defenderam igualmente a organização econômico-social
não-capitalista da RDC. Nas declarações desse último bloco, em alguns casos,
expressou-se a contradição já presente na corajosa moção de apoio de Brizola
Neto.
Voltando ao exemplo citado, Trotsky exigia a incondicional
solidariedade a um país como o Brasil, sob regime ditatorial, no caso de ataque
imperialista. Sem, porém, propor qualquer apoio ou defesa do regime getulista.
Opor-se com unhas e dentes à destruição da autonomia da Iugoslávia, Iraque,
Líbia etc. não significava dar carta branca a Slobodan Milošević, a Saddam
Hussein e Muammar al-Kadafi. Entretanto, as críticas a esses dirigentes que não
devem obscurecer o fato que morreram defendendo suas nações. Sustentar e
celebrar em forma inarredável a reconquista total pelas tropas nacionais e seus
aliados do território sírio, não implica adesão sem críticas a Bashar al-Assad
e às instituições do país. Como a luta contra o golpe em 2016 e o impeachment
podia ser feita, como foi feita por muitos, sem a defesa da ação do governo
social-liberal de Dilma Rousseff.
A organização política norte-coreana, com o exótico caráter
hereditário da direção do Estado e do Partido, não constitui forma de expressão
do poder dos trabalhadores em um Estado socialista. Isso na RDC ou em qualquer
outra parte do mundo. Aquela forma de governo não se trata de uma criação
original, nascida de tradições nacionais orientais. Ela constitui a gestão de
um Estado de economia nacionalizada e planejada por uma burocracia que se
substitui aos órgãos soviéticos de poder. Ou seja, à gestão do Estado pelos
trabalhadores. Em verdade, essa excrescência político-social, com seus
privilégios inaceitáveis, enfraquece a
coesão interna e dificulta a defesa da RDC por seus apoiadores no exterior.
Portanto, devemos nos juntar, todos, em torno da defesa
plena e incondicional da autonomia da República Democrática da Coréia. E no
caso dos que se propõem socialistas, da propriedade pública, do planejamento da
economia, do monopólio do comércio exterior. Mas sem beijinhos e afagos para com o Líder
Celestial.
Mário Maestri - Historiador