O regime capitalista pós-apartheid
sob a crítica da economia política marxista
sob a crítica da economia política marxista
Humberto Rodrigues
A África do Sul de Nelson Mandela, renda e população por grupo racial, 1910 - 2010 Fonte: The Economist |
A ultra-hipocrisia de Cameron é compartilhada pelo conjunto
do imperialismo que apoiou ao apartheid sul africano assim como segue hoje
apoiando ao sionismo israelense, as mais recentes encarnações do nazismo por
regimes de Estado. Os funerais do ex-“terrorista” que deveria ser “enforcado”
tornaram-se a mais importante homenagem política feita pela burguesia mundial
em 2013, da qual participaram mais de 90 dos principais líderes de nações
burguesas.
Obama, Cameron e Cia se apoiam em uma visão parcial acerca
de Mandela comungada por milhões de pessoas simples que também prestam
homenagem ao líder negro neste momento. A visão de que o fim do apartheid como
regime de Estado foi produto unicamente do sacrifício de muitos lutadores
negros, incluindo crianças, e das campanhas internacionais de solidariedade,
greves e boicotes contra o apartheid. Estes elementos da luta de classes
pressionaram pelo fim do apartheid, mas é ingenuidade não perceber que em um
dado momento da luta o imperialismo e a própria burguesia branca compreenderam que
era preciso ceder alguns anéis para não perder os dedos e acabar levando a
melhor com essa concessão. Como provaremos abaixo, o fim do apartheid foi uma
medida necessária e lucrativa para a burguesia racista branca sul africana e
para o grande capital no mundo todo.
Muito proselitismo se fala sobre Mandela e sobre o fim do
apartheid, mas pouco se fala da transição burguesa na era Mandela sob o ponto
de vista da economia política marxista, quando a exploração de classe foi
acentuada. Para isto, nos valemos dos estudos de Michael Roberts, um economista
marxista, autor do livro The Great Recession. Profit cycles, economic crisis – A Marxist View
(A grande recessão. Ciclos de lucro, crise econômica – Uma visão
marxista). http://thenextrecession.wordpress.com/2013/12/06/mandelas-economic-legacy/
A RESISTÊNCIA PROLETÁRIA, CRISE ECONÔMICA
E A LUTA NACIONAL DA NAMÍBIA ARRUINAM O APARTHEID
Para gente como Cameron e mais ainda para a elite
capitalista racista sul africana não foi uma tarefa fácil rever os conceitos e
deixar de considerar Mandela e a direção do CNA como “terroristas” que deveriam
ser enforcados e permitir a ascensão pela via da democracia burguesa de um
presidente negro. Foi uma revisão inevitável e necessária. Por quê? Roberts
fornece dados que nos ajuda a compreender. A economia capitalista da África do
Sul estava de joelhos, não só por causa do boicote, mas porque a produtividade
da mão de obra negra nas minas e fábricas despencou. Assim, os investimento na
indústria e os investimento estrangeiros caiam drasticamente. Por isso a
rentabilidade do capital atingiu seu menor patamar desde a II Guerra Mundial,
agravada pela recessão global do início dos anos 1980.
Para além dos registros de Roberts, Leon Carlos da TMB
argentina nos chama a atenção para um outro elemento que se soma aos dois
primeiros. Desde a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial, a Namíbia, até
então ocupada pela Alemanha passa a ser dominada pela Liga das Nações (hoje
ONU) que repassa o controle militar do país para a elite branca da África do
Sul que por sua vez estende o apartheid para a Namíbia. A vanguarda da
resistência anti-apartheid na Nambíbia cria em 1966, a SWAPO (South-West Africa
People's Organisation), um movimento independentista, que lançou uma guerra de
guerrilha contra as forças ocupantes, forçando que em 1988 o governo
sul-africano termine sua administração do território. A independência da
Namíbia da África do Sul em 1990 agrava a crise econômica sul africana e ao
combinar a luta nacional contra a luta anti-racista serve de exemplo para a
luta contra o regime segregacionista na própria África do Sul. A intervenção
militar sul africana na Namíbia e em Angola é conduzida ao esgotamento quando
os mercenários da UNITA, apoiados pelo apartheid, pelo imperialismo estadunidense
e pela burocracia chinesa são derrotados pelo MPLA, apoiado por Cuba e pela
URSS.
Portanto, o colapso do ciclo de acumulação do capital
apoiado no apartheid também está estreitamente vinculado a retirada das tropas
sul africanas da Namíbia e o esgotamento da Africa do Sul como gendarme do
imperialismo na parte meridional do continente (tarefa que o governo Mandela
retoma em 1998, já com uma África do Sul revigorada, invadindo militarmente a Lesoto
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/179120.stm).
A vitória do proletariado da Namíbia favorece a resistência do proletariado sul
africano nas minas e nas fábricas.
África do Sul: a recuperação da taxa de lucro capitalista após a eleição de Mandela em 1994 |
O presidente Frederik de Klerk reverteu décadas de política
anterior e optou por liberar Mandela e impulsionar um governo de maioria negra
que poderia restaurar a disciplina do trabalho e recuperar a taxa de lucro. Por
encontrar esta saída conciliatória em favor do parasitismo imperialista sobre a
África do Sul De Klerk e Mandela foram premiados com o Nobel da Paz e Mandela
tornado presidente com 76 anos de idade.
O governo Mandela deu-se início a um novo ciclo de acumulação capitalista onde a rentabilidade aumentou fabulosamente no primeiro governo Mandela, a taxa de exploração da força de trabalho disparou. Note-se que nos gráficos "África do Sul: taxa de lucro (%), rate of profit"; e "África do Sul: taxa de exploração (%), "rate of exploitation" que abordam o longo período de 1963 a 2007 a maior queda da taxa de lucros e da exploração da força de trabalho é no início dos anos 90, queda que logo se recupera abruptamente a partir da eleição de Mandela em 1994.
O governo Mandela deu-se início a um novo ciclo de acumulação capitalista onde a rentabilidade aumentou fabulosamente no primeiro governo Mandela, a taxa de exploração da força de trabalho disparou. Note-se que nos gráficos "África do Sul: taxa de lucro (%), rate of profit"; e "África do Sul: taxa de exploração (%), "rate of exploitation" que abordam o longo período de 1963 a 2007 a maior queda da taxa de lucros e da exploração da força de trabalho é no início dos anos 90, queda que logo se recupera abruptamente a partir da eleição de Mandela em 1994.
África do Sul: taxa de exploração (%)
Sem interrupção no aumento das taxas de exploração
sob os mandatos da
maioria negra.
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Mais dura ainda foi a crítica realizada pela ex-esposa de Mandela, Winnie. Em 2010 Winnie “'Vocês todos devem perceber que Mandela não foi o único homem que sofreu. Havia muitos outros, centenas de pessoas que definhava na prisão e morreram. Mandela foi para a prisão e ele foi lá como um jovem revolucionário, mas olha o que saiu. Mandela nos decepcionou. Ele realizou um mau negócio para os negros. Economicamente ainda estamos do lado de fora. A economia é muito mais 'branca'. Eu não posso perdoá-lo por ter ido a receber o Nobel com seu carcereiro de Klerk.” Winnie também disparou contra um dos principais testas de ferro de Mandela, o arcebismo Desmond Tuto, “Ela disse que o arcebispo Desmond Tutu foi um cretino e afirmou que os sacrifícios de Steve Biko e outros na luta contra o apartheid estavam sendo esquecidas.” Winnie foi perseguida por defender a punição dos colaboradores do apartheid com 'Necklacing' - colocando pneus em chamas em torno de seus pescoços.
Aos 73 anos ela disse que seu ex-marido havia se tornado uma "fundação corporativa” com a finalidade de arrecadar dinheiro para o CNA. Para ela, o ex-marido decepcionara os negros sul-africanos, mantendo-os na pobreza e fazendo os brancos ainda mais ricos. http://www.dailymail.co.uk/news/article-1256425/Nelson-Mandelas-ex-wife-accuses-President-betraying-blacks-South-Africa.html#ixzz2nEQuMWl5
Como parte da dinâmica dos ciclos capitalistas, agora é
justamente a superprodução de mercadorias e capitais obtida nos governos do CNA
que vem provocando a redução na taxa de lucros e o declínio do atual ciclo de acumulação.
O REGIME PÓS-APARTHEID DO CNA, DINAMO DA ECONOMIA
CAPITALISTA SUL AFRICANA E DA MISÉRIA DAS MASSAS NEGRAS
O dinamismo no aumento da lucratividade perdeu força no
início dos anos 2000, quando a composição orgânica do capital aumentou de forma
acentuada, através do crescimento da mecanização, embora isso ainda causasse
certo aumento na taxa de exploração. A indústria sul-africana agora está em
dificuldades, o desemprego e o crime permanecem nos mais altos níveis globais e
o crescimento econômico naufraga.
A África do Sul sob comando de Mandela e depois Thabo Mbeki
viu alguma melhora nas verdadeiramente horríveis condições de vida da maioria
negra, em saneamento, habitação, eletricidade, educação, saúde etc., dando fim
ao cruel e autoritário controle de mobilidade e à desigualdade total do regime
do apartheid. Mas a África do Sul ainda tem a maior desigualdade de renda e
saúde do mundo e, desde que os capitalistas negros aderiram aos brancos no jogo
da economia capitalista, a desigualdade nunca foi tão grande. A despeito de
professar o socialismo, o CNA nunca caminhou rumo à substituição do modo
capitalista de produção pela propriedade comum, nem mesmo no que se refere à
indústria mineral.
Tal como a OCDE colocou em seu relatório sobre desigualdade
de renda em economias emergentes: “em um extremo, um forte crescimento na
década passada esteve de mãos dadas com o declínio da desigualdade de renda em
dois países (Brasil e Indonésia); no outro extremo, quatro países (China,
Índia, Rússia e África do Sul) registraram grandes aumentos nos níveis de
desigualdade durante o mesmo período, mesmo quando suas economias passaram por
forte expansão.
A minúscula minoria branca e rica manteve-se muito longe de
ser afetada com o final do regime de segregação racial. Outra vez, de acordo
com a OCDE: “esse é um desafio particularmente sério para a África do Sul, onde
a divisão geográfica reflete a desigualdade entre as raças. A renda real aumentou
para todos os grupos depois do fim do apartheid [refletindo o fenômeno da
pauperização relativa, onde o aumento dos salários ocorre de forma bem inferior
ao aumento da riqueza dos patrões]. Sob qualquer critério de pobreza, os negros
sul-africanos são muito mais pobres do que mestiços, que são bem mais pobres do
que indianos e asiáticos, por sua vez mais pobres que os brancos”.
Agora, os ricos brancos receberam a companhia dos ricos
negros que dominam os negócios e exercem enorme influência sobre as lideranças
negras no comando do Congresso Nacional Africano (CNA). O CNA expressa as
fortes divisões entre a maioria da classe trabalhadora negra e a pequena classe
dominante negra que se desenvolveu. Essas fissuras aparecem cada vez mais,
ainda sem uma ruptura decisiva (como vimos recentemente no fuzilamento de
mineiros em greve pela polícia, sob um governo negro). Sobre isso, recomendamos ler o artigo da LC - AFRICA DO SUL: A luta pela libertação do proletariado africano e o verdadeiro legado de Mandela.
O RACISMO CAPITALISTA SEGUE FIRME
SOB O GOVERNO DE MANDELA E DO CNA
Outra ilusão é acreditar que a transferência da gestão do
capitalismo sul africano para mãos negras possa assegurar o fim do racismo
contra aqueles que não fazem parte da nova elite burguesa negra. Neste sentido,
o racismo sul africano que até meados dos anos 90 era uma política de Estado,
travestiu-se, na era Mandela, do racismo brasileiro dissimulado de “democracia
racial”. Não é por demais relembrar os ensinamentos de Malcolm X de que não
existe capitalismo sem racismo.
Hoje no país, a renda média dos negros representam um sexto
da dos brancos sul-africanos, ou seja, o racismo lá ainda é muito pior do que
no Brasil, onde a renda do trabalhador negro é, em média, 53% da do branco.
"‘Nós ainda temos desemprego racial, pobreza racial e desigualdade
racial’, disse Sidumo Dlamini, presidente do Congresso de Sindicatos Comerciais
do país, com 2,2 milhões de membros. ‘Nosso país ainda está nas mãos dos
brancos...’ O índice de Gini, que mede a desigualdade, subiu de 0,59 em 1993
para 0,63 em 2009, o que mantém a sociedade sul-africana como uma das mais
desiguais do mundo. A pobreza continua predominante entre os sul-africanos
negros, que representam 79% da população de 53 milhões. Líderes sindicais
culpam as diretrizes econômicas de 1996, que Mandela classificou como
"inegociáveis", por perpetuar a desigualdade da era do apartheid.”
(Mike Cohen, Legado econômico de Mandela está ameaçado, Bloomberg ,10/12/2013).
A taxa de desemprego África do Sul subiu de 15,6% em 1995 para 25,6% em 2000.
Quase um em cada três negros está desempregado, em comparação com um em cada 20
brancos. Relatórios da ONU costumam colocar cidades da África do Sul entre as
mais desiguais do mundo.
Este é o legado de Mandela, de dar uma saída burguesa negra
para a falência do apartheid. A verdadeira superação do secular parasitismo
imperialista sobre o continente negro está na construção de um partido operário
revolucionário negro que conduza conjunto da insatisfação crescente das massas
secularmente exploradas em direção à luta pela expropriação revolucionária do
imperialismo e seus títeres, dos senhores da guerra tribais mercenários e dos
novos ricos negros pelo proletariado negro e edificação de uma Federação
Socialista das repúblicas soviéticas africanas.