A
Natureza de classe da URSS
Leon
Trotsky (1933)
A
ruptura com a Internacional Comunista e a orientação de formar uma nova
internacional colocaram novamente o problema do caráter de classe da URSS. Será
que o desastre da Internacional Comunista não significa também, ao mesmo tempo,
o do estado que surgiu da Revolução de Outubro? Certamente, ambas as instâncias
têm a ver com a mesma organização dominante: o aparato stalinista. Este aplicou
os mesmos métodos dentro da URSS e no terreno internacional. Nós, os marxistas,
nunca fomos partidários do duplo sistema de contabilidade dos brandleristas [1],
segundo o qual a política dos stalinistas é impecável na URSS e catastrófica
fora de suas fronteiras. Estamos convencidos de que é igualmente catastrófica
em ambos os terrenos. Se é assim, não se deve reconhecer, então, que o colapso
da Internacional Comunista é simultâneo à liquidação da ditadura proletária na
URSS?
À
primeira vista, esse raciocínio parece irrefutável. Mas é errôneo. Embora os
métodos da burocracia stalinista sejam homogêneos em todos os terrenos, os
resultados objetivos desses métodos dependem das condições externas ou, para
usar a linguagem da mecânica, da resistência do material. A Internacional
Comunista era um instrumento para a destruição do sistema capitalista e o
estabelecimento da ditadura do proletariado. O governo soviético é um
instrumento para a preservação das conquistas já obtidas. Os partidos
comunistas do Ocidente não herdaram nenhum capital. Sua força (na realidade,
sua debilidade) reside única e exclusivamente neles mesmos. Nove décimos da
força do aparato stalinista não residem nele mesmo, e sim nas mudanças
provocadas pela revolução triunfante. Esta consideração, em si, não resolve a
questão, mas é de grande importância metodológica. Ela nos demonstra como e por
que o aparato estalinista pôde perder totalmente o sentido como fator
revolucionário internacional e, contudo, manter parte de seu significado
progressivo como guardião das conquistas sociais da revolução proletária. Esta
posição dual podemos acrescentar — constitui em si mesma uma manifestação da
desigualdade do desenvolvimento histórico.
A
política correta de um Estado operário não se reduz apenas à construção
econômica nacional. Se a revolução não se expande em nível internacional,
seguindo a espiral proletária, dentro dos limites nacionais começará
inevitavelmente a contrair-se seguindo a espiral burocrática. Se a ditadura do
proletariado não se estender em nível europeu e mundial, começará a marchar
rumo à derrota. Tudo isto é completamente indiscutível numa perspectiva
histórica ampla. Mas as coisas se definem em períodos históricos concretos. É
possível dizer que a política da burocracia stalinista já levou à liquidação do
Estado operário? Este é o problema agora.
Contra
a afirmação de que o Estado operário já está praticamente liquidado ergue-se,
em primeiro lugar, a importante posição metodológica do marxismo. A ditadura do
proletariado se impôs através de uma transformação política e de uma guerra
civil que durou três anos. Tanto a teoria da sociedade de classes como a
experiência histórica atestam a impossibilidade da vitória do proletariado
através de métodos pacíficos, ou seja, sem grandiosas batalhas de classe,
travadas de armas nas mãos. Nesse caso, como se pode conceber uma
contra-revolução burguesa imperceptível, "gradual"? Pelo menos até
agora, tanto as contra-revoluções feudais como as burguesas nunca se deram
"organicamente"; exigiram, inevitavelmente, a intervenção armada. Em
última instância, as teorias reformistas — na medida em que o reformismo possa
chegar à teoria — foram sempre baseadas na incapacidade de compreender que os
antagonismos de classe são profundos e irreconciliáveis; daí a perspectiva de
uma transformação pacífica do capitalismo em socialismo. A tese marxista
relativa ao caráter catastrófico da transferência do poder das mãos de uma
classe às de outra irão se aplica somente às épocas revolucionárias, nas quais
a história avança varrendo loucamente tudo, mas também às épocas
contra-revolucionárias, nas quais a sociedade retrocede. Quem afirma que o
governo soviético foi mudando gradualmente de proletário para burguês
limita-se, por assim dizer, a projetar de trás para diante o filme do
reformismo.
Nossos
adversários podem negar o caráter metodológico geral dessa proposição e
declarar que, por mais importante que seja, revela-se contudo excessivamente
abstrata para resolver o problema. A verdade é sempre concreta. A tese da
irreconciliabilidade das contradições de classe pode orientar-nos em nossa
análise, mas não substituir os seus resultados. É preciso investigar
profundamente o conteúdo material do próprio processo histórico.
Respondemos
que é certo que um argumento metodológico não esgota o problema. Mas, de
qualquer forma, transfere o ônus da prova para a outra parte. Os críticos que
se consideram marxistas têm que demonstrar de que maneira a burguesia, que
perdeu o poder após uma luta de três anos, conseguiu reconquistá-lo sem travar
uma única batalha. Contudo, visto que nossos oponentes nem sequer procuram dar
algum tipo de expressão teórica à sua caracterização do estado soviético,
tentaremos aqui realizar este trabalho por eles.
O
argumento mais difuso, popular e, à primeira vista, irrefutável acerca do
caráter não-proletário do atual estado soviético é o que se refere ao estrangulamento
das liberdades das organizações proletárias e à onipotência da burocracia. É
realmente possível identificar a ditadura de um aparato, que conduziu à
ditadura de uma só pessoa, com a ditadura do proletariado como classe? Não é
evidente que a ditadura do proletariado exclui a ditadura sobre o proletariado?
Esse
raciocínio atraente não está construído sobre uma análise materialista do
processo, tal como se desenvolve na realidade, e sim, sobre esquemas puramente
idealistas, sobre normas kantianas. Alguns nobres "amigos" da
revolução formaram uma idéia muito brilhante da ditadura do proletariado e
ficam completamente transtornados com o fato de que a ditadura real, com a sua
herança da barbárie de classe, com as suas contradições internas, com os erros
e crimes da direção, não se parece em nada à bela imagem que fizeram.
Destruídas as suas mais formosas ilusões, dão as costas à União Soviética.
Onde,
em que livros é possível encontrar a receita perfeita para uma ditadura
proletária? A ditadura de uma classe não significa, absolutamente, que toda a
massa dessa classe participe sempre da administração do Estado. Observamos
isso, para começar, no caso das classes proprietárias. A nobreza governava
através da monarquia, perante a qual o nobre punha-se de joelhos. A ditadura da
burguesia só apresentou formas democráticas relativamente desenvolvidas nas
condições do ascenso capitalista, quando a classe dominante não tinha nada a
temer. Diante dos nossos próprios olhos, na Alemanha, a democracia foi suplantada
pela autocracia de Hitler, que esmigalhou todos os partidos burgueses
tradicionais. Hoje a burguesia alemã não governa diretamente, está
politicamente submetida a Hitler e suas quadrilhas. No entanto, a ditadura da
burguesia permanece intacta, já que se mantiveram e fortaleceram todas as
condições de sua hegemonia social. Ao expropriar politicamente a burguesia,
Hitler a salvou, embora provisoriamente, da expropriação econômica. O fato de
que a burguesia tenha se visto obrigada a recorrer ao regime fascista demonstra
que sua hegemonia estava em perigo, mas não que havia desaparecido.
Antecipando-se
a nossos próximos argumentos, nossos adversários se apressarão a replicar:
mesmo que a burguesia, como minoria exploradora, possa manter sua hegemonia
também através de uma ditadura fascista, o proletariado não pode construir a
sociedade socialista sem administrar seu próprio governo, atraindo massas
populares cada vez mais amplas para cumprir diretamente esta tarefa. Em seu
caráter geral este argumento é indiscutível, mas, neste caso específico,
significa apenas que a atual ditadura soviética é uma ditadura doente. As
terríveis dificuldades da construção socialista num país isolado e atrasado,
unidas à falsa política da direção — que, em última instância, também reflete a
pressão do atraso e do isolamento —, levaram a burocracia a expropriar politicamente
o proletariado para proteger suas conquistas sociais com seus próprios métodos.
As relações econômicas da sociedade determinam sua anatomia. Enquanto as formas
de propriedade criadas pela Revolução de Outubro não forem liquidadas, o
proletariado continuará sendo a classe dominante.
Os
discursos sobre "a ditadura da burocracia sobre o proletariado", sem
uma análise muito mais profunda, ou seja, sem uma explicação clara das raízes
sociais e dos limites de classe da dominação burocrática, se diluem em meras
frases democráticas, dessas que são tão populares entre os mencheviques. Não há
dúvida de que a imensa maioria dos operários soviéticos está descontente com a
burocracia e de que um setor considerável, certamente não o pior, a odeia.
Contudo, não se deve somente à repressão o fato de que esta insatisfação não
assuma formas massivas violentas; os operários temem aplanar o caminho para o
inimigo de classe se derrubarem a burocracia. As relações entre a burocracia e
a classe operária são muito mais complexas do que supõem os
"democratas" superficiais. Os operários soviéticos já teriam acertado
as contas com o despotismo do aparato se fossem outras as perspectivas que se
abrem diante deles; se o horizonte ocidental, em vez do tom pardo do fascismo,
se incendiasse com o vermelho da revolução. Enquanto isto não ocorre, o
proletariado, rangendo os dentes, sustenta ("agüenta") a burocracia
e, neste sentido, a reconhece como porta-voz da ditadura do proletariado. Numa
conversa pessoal, nenhum operário soviético economizará xingamentos para
qualificar a burocracia. Mas nenhum admitirá que a contra-revolução já
aconteceu. O proletariado é a espinha dorsal do estado soviético. Mas, dado que
a função de governar está concentrada nas mãos de uma burocracia irresponsável,
temos diante de nós um estado obviamente doente. É possível curá-lo? As
tentativas de curá-lo não significarão um estéril desperdício de tempo
precioso? A questão está mal colocada. Não se trata de recorrer a todo tipo de
medidas artificiais, independentes do movimento revolucionário mundial, e sim
de travar uma luta sob as bandeiras do marxismo. A crítica implacável à
burocracia stalinista, a educação dos quadros da nova internacional para
reconstituir a capacidade de luta da vanguarda proletária mundial: esta é a
essência da "cura". Ela coincide com o rumo fundamental do processo
histórico.
Durante
estes últimos anos, nossos adversários, muito corretamente, nos disseram muitas
vezes que estávamos "perdendo tempo", tentando curar a Internacional
Comunista. Nunca prometemos a ninguém curar a Internacional. Somente nos
negamos a dar o doente por morto ou agonizante, até que chegasse o momento da
prova decisiva. De qualquer maneira, não perdemos um só dia
"curando-a". Formamos quadros revolucionários e, não menos
importante, preparamos as posições teóricas e programáticas fundamentais da
nova internacional.
Os
senhores sociólogos "kantianos" (pedimos desculpas à imagem de Kant)
amiúde chegam à conclusão de que uma "real" ditadura do proletariado,
ou seja, conforme as suas normas ideais, só existiu nos dias da Comuna de
Paris, ou no primeiro período da Revolução de Outubro, até a paz de
Brest-Litovsk, ou, no máximo, até a NEP. Isto, certamente, é ir longe demais!
Se Marx e Engels consideraram "ditadura do proletariado" a Comuna de
Paris, foi somente pelas possibilidades que ela apontava. Mas, em si mesma, a
Comuna não era ainda a ditadura do proletariado. Depois de tomar o poder, mal
soube utilizá-lo; em vez de tomar a ofensiva, esperou; permaneceu isolada no
âmbito de Paris; não ousou tocar nos bancos estatais; não conseguiu alterar as
relações de propriedade porque não tomou o poder à escala nacional. A isto
deve-se somar a unilateralidade blanquista e os preconceitos proudhonistas, que
impediram que até os dirigentes do movimento assumissem plenamente a Comuna
como ditadura do proletariado.
Igualmente
infeliz é a referência à primeira época da Revolução de Outubro. Não só até a
paz de Brest-Litovsk senão até o outono de 1918, o conteúdo social da revolução
limitava-se a uma reforma agrária pequeno-burguesa e ao controle operário da
produção. Isto significa que, na prática, a revolução não havia superado os
limites da sociedade burguesa. Durante esta primeira etapa, os sovietes de
soldados governavam ombro a ombro com os sovietes operários, e freqüentemente
os deixaram de lado. Somente no outono de 1918 a primeira onda de soldados e
camponeses retrocedeu um pouco aos limites naturais e os operários tomaram a
dianteira, com a nacionalização dos meios de produção. Só a partir desse
momento é que se pode falar da instauração de uma verdadeira ditadura do
proletariado; e mesmo assim, com muitas reservas. Naqueles primeiros anos, a
ditadura ficou limitada aos limites geográficos do velho principado de Moscou e
se viu obrigada a travar uma guerra de três anos em todo o raio de Moscou até a
periferia. Ou seja, até 1921, precisamente até a NEP, o que houve foi uma luta
para implantar a ditadura do proletariado em escala nacional. E se, como pensam
os filisteus pseudo-marxistas, a ditadura desapareceu com o começo da NEP,
então se pode dizer que nunca existiu. Para estes cavalheiros, a ditadura do
proletariado é simplesmente um conceito imponderável, uma norma ideal
irrealizável neste mundo de pecado. Não é de se estranhar que os
"teóricos" deste modelo, na medida em que não esclarecem minimamente
a própria palavra ditadura, pretendam ocultar a contradição irreconciliável
entre esta e a democracia burguesa.
Da
perspectiva de laboratório e não de um ponto de vista político, é muito
característica a seita parisiense dos "democratas comunistas"
(Souvarine e Cia.). O seu próprio nome indica uma ruptura com o marxismo. Na
Crítica ao Programa de Gotha, Marx rechaçava o nome de social-democracia por colocar
a luta socialista revolucionária sob o controle formal da democracia. É
evidente que não há diferença de princípios entre ser "democrata
comunista" e ser "democrata socialista", ou seja,
social-democrata. Não existe uma divisão precisa e bem delimitada entre o socialismo
e o comunismo. A transgressão começa quando o socialismo e o comunismo, como
movimento ou como estado, não se subordinam ao verdadeiro curso nem às
condições materiais do processo histórico, e sim à abstração supra-social e
supra-histórica da "democracia", que é na realidade uma arma
defensiva da burguesia contra a ditadura proletária. Se na época do Programa de
Gotha (1875) ainda se podia ver na palavra social-democracia apenas uma
denominação incorreta e anti-científica para um partido sadiamente proletário,
toda a história posterior da democracia burguesa e da "social"
democracia faz, da reivindicação de "comunismo (?) democrático" uma
direta traição de classe [2].
Um
adversário do tipo de Urbahns dirá que é certo que ainda não se restaurou o regime
burguês, mas que também já não existe um estado operário; o atual regime
soviético estaria regido por um governo supra ou interclassista, bonapartista.
Em outra época já ajustamos as contas com esta teoria. Historicamente, o
bonapartismo foi e continua sendo o governo da burguesia durante os períodos de
crise da sociedade burguesa. É possível e necessário distinguir entre o
bonapartismo "progressivo", que consolida as conquistas puramente
capitalistas da revolução burguesa, e o da decadência da sociedade capitalista,
o convulsivo bonapartismo de nossa época (Von Papen, Schleicher, Dollfuss,
Colijn — o candidato ao bonapartismo holandês — etc.). O bonapartismo implica
sempre na oscilação política entre as classes, mas em todas as suas
reencarnações históricas conservou uma só e única base social: a propriedade
burguesa. Nada mais absurdo do que tirar a conclusão de que o estado
bonapartista não é classista, julgando por sua oscilação entre as classes ou
pela posição "supraclassista" da camarilha que o governa. Que
aberração! O bonapartismo não passa de uma das variedades de hegemonia
capitalista.
Se
Urbahns pretende estender o conceito de bonapartismo, incluindo também o atual
regime soviético, estamos dispostos a aceitar essa interpretação ampliada, mas
com uma condição: que se defina, com a necessária clareza, o conteúdo social do
"bonapartismo" soviético. É absolutamente correto que o autogoverno
da burocracia soviética foi construído com base na oscilação entre as
diferentes forças de classe, tanto internas como internacionais. Na medida em
que a oscilação burocrática entre as classes culminou no regime plebiscitário e
pessoal de Stalin, pode-se falar de bonapartismo soviético. Mas enquanto o
bonapartismo dos dois Bonapartes e de seus lamentáveis seguidores atuais se
desenvolveu e se desenvolve sobre um regime burguês, o bonapartismo da
burocracia soviética ergue-se sobre a base de um regime soviético. As inovações
terminológicas e as analogias históricas podem ser, de alguma maneira, úteis
para a análise, mas não podem mudar o caráter social do estado soviético.
"CAPITALISMO
DE ESTADO"
A
propósito, Urbahns criou recentemente uma nova teoria: parece que a estrutura
econômica soviética é uma variedade do "capitalismo de estado". Há um
certo "progresso" no fato de Urbahns ter baixado de seus exercícios
terminológicos na esfera da superestrutura política, para os fundamentos
econômicos. Mas não se saiu bem na caminhada.
Segundo
Urbahns, a mais nova forma de autodefesa do regime burguês é o capitalismo de
estado: basta dar uma olhada no estado corporativo "planificado" da
Itália, da Alemanha e dos Estados Unidos. Acostumado aos gestos
grandiloqüentes, inclui também a URSS. Falaremos adiante deste problema.
Urbahns observa um fenômeno muito importante dos estados capitalistas de nossa
época. Para o capitalismo monopolista, há muito tempo se tornaram apertados os
limites da propriedade privada dos meios de produção e do Estado nacional.
Contudo, paralisada pelas suas próprias organizações, a classe operária foi
incapaz de atuar a tempo para liberar as forças produtivas da sociedade de seus
grilhões capitalistas. Desse fato surgem as prolongadas convulsões econômicas e
políticas. As forças produtivas entram em choque com as barreiras da
propriedade privada e das fronteiras nacionais. Os governos burgueses se vêem
obrigados a recorrer ao bastião policial para esmagar o motim de suas próprias
forças produtivas. Isso é o que significa a chamada economia planificada. Na
medida em que o estado tenta frear e disciplinar a anarquia capitalista,
pode-se falar, condicionalmente, de "capitalismo de estado".
Mas
temos que recordar que originalmente os marxistas entendiam por capitalismo de
estado unicamente as empresas econômicas independentes que eram de propriedade
do estado. Quando os reformistas sonhavam em superar o capitalismo através da
municipalização ou nacionalização de um número cada vez maior de empresas
industriais e de transporte, os marxistas replicavam, para refutá-los: isso não
é socialismo e sim capitalismo de estado. Mas posteriormente este conceito
adquiriu um sentido mais amplo e começou a ser aplicado a todos os tipos de
intervenção estatal na economia; os franceses utilizam, neste sentido, a
palavra étatisme (estatismo).
Mas
Urbahns, além de expor as transformações do capitalismo de Estado, as
interpreta a seu modo. Pelo que é possível entender do que diz, declara que o
regime do "capitalismo de Estado’’ constitui uma etapa progressiva e
necessária do desenvolvimento da sociedade, no mesmo sentido em que os trustes
são progressivos em comparação à dispersão das empresas. Um erro tão fundamental
na caracterização da planificação capitalista é suficiente para liquidar
qualquer acerto.
Durante
o ascenso capitalista, que terminou com a guerra, era possível — sob certas
condições políticas — considerar como manifestações progressivas as diversas
formas de estatização, ou seja, considerar que o capitalismo de estado
impulsiona a sociedade para a frente e facilita a futura tarefa econômica da
ditadura proletária. Mas a atual "economia planificada" deve ser
considerada uma etapa completamente reacionária; o capitalismo de Estado
pretende afastá-la da divisão mundial do trabalho, adaptar as forças produtivas
ao leito de Procusto do estado nacional, restringir artificialmente a produção
de alguns setores e criar, de maneira igualmente artificial, outros setores,
através de enormes investimentos improdutivos. A política econômica do estado
atual — que começa com impostos ao estilo da velha China e chega às ocasionais
proibições de utilizar maquinaria na "economia planificada" de Hitler
— consegue uma regulagem instável, às custas da deterioração da economia
nacional, de provocar o caos nas relações mundiais e de perturbar totalmente o
sistema monetário, que será muito necessário para a planificação socialista. O
atual capitalismo de estado não prepara nem aplana a tarefa futura do estado
socialista, mas, pelo contrário, lhe cria colossais dificuldades adicionais. O
proletariado deixou passar muitas oportunidades de tomar o poder. Com isso
criou as condições políticas para a barbárie fascista e as condições econômicas
para a obra destrutiva do "capitalismo de estado". Depois da
conquista do poder, o proletariado terá que pagar, no plano da economia, os
seus erros políticos.
Contudo,
o que mais nos interessa, dentro dos limites desta análise, é a tentativa de
Urbahns de incluir a economia da URSS no "capitalismo de Estado". E
para isso toma como referência — custa acreditar! — Lenin. Só há uma explicação
possível para esta referência: como eterno inventor, criador de uma teoria nova
por mês, Urbahns não tem tempo de ler os livros que cita. É certo que Lenin
aplicou o termo "capitalismo de Estado", mas não à economia soviética
de conjunto, somente a um determinado setor dela: às concessões ao capital
estrangeiro, às companhias industriais e comerciais mistas e, em parte, às
cooperativas camponesas, fundamentalmente dos kulaks (camponeses ricos), sob
controle estatal. Indubitavelmente todos estes são elementos de capitalismo;
mas como estão controlados pelo estado, e inclusive, por sua participação direta,
funcionam como companhias mistas, condicionalmente ou, segundo sua própria
expressão, "entre aspas" Lenin chamou "capitalismo de
Estado" a estas formas econômicas. O condicionamento deste termo provém de
que se trata de um estado proletário, não de um estado burguês; com as aspas
queria acentuar esta importante diferença. Contudo, na medida em que o estado
proletário aceitava o capital privado e lhe permitia, com certas restrições,
explorar os trabalhadores, abrigava sob uma de suas alas determinadas relações
burguesas. Neste sentido estritamente limitado é que se pode falar de
"capitalismo de Estado".
Lenin
criou essa expressão no momento da transição à NEP, quando supunha que as
concessões e as "companhias mistas", ou seja, as empresas baseadas na
conjunção de capital estatal e privado, ocupariam na economia soviética uma
posição paralela a dos trustes e corporações puramente estatais. Contrapondo-os
às empresas capitalistas de estado — concessões etc. —, Lenin definia os
trustes e sindicatos soviéticos como "empresas de tipo socialista
conseqüente". Previa o desenvolvimento ulterior da economia soviética,
particularmente da indústria, como uma concorrência entre as empresas
capitalistas de estado e as puramente estatais.
Acreditamos
que agora tenha ficado claro dentro de que limites Lenin utilizou essa
expressão que fez Urbahns cair em tentação, Para destacar mais a catástrofe
teórica desse dirigente do "Lenin (!) bund", recordemos que,
contrariamente às expectativas originais de Lenin, nem as concessões nem as
companhias mistas desempenharam um papel relevante no desenvolvimento da
economia soviética. De modo geral, já não resta nada dessas empresas
"capitalistas de Estado". Por outro lado, os trustes soviéticos, cujo
destino parecia tão incerto no início da NEP, tiveram um desenvolvimento
gigantesco após a morte de Lenin. Portanto, para utilizar a terminologia de
Lenin conscientemente e com alguma compreensão do assunto, é preciso dizer que
o desenvolvimento econômico soviético superou totalmente a etapa do
"capitalismo de Estado’’ e seguiu o caminho das empresas "de tipo
socialista conseqüente’’.
Devemos
também esclarecer qualquer possível mal-entendido no sentido contrário. Lenin
escolheu seus termos com precisão. Não considerou os trustes como empresas
socialistas, como as chamam agora os stalinistas, e sim empresas "de tipo
socialista". Na pena de Lenin, esta útil distinção terminológica implicava
que os trustes só terão o direito de ser chamados de socialistas — não por seu
tipo, não por sua tendência, e sim por seu conteúdo genuíno — quando se
revolucionar a economia rural, quando se destruir a contradição entre a cidade
e a aldeia, quando os homens aprenderem a satisfazer plenamente suas
necessidades; em outras palavras, somente na medida em que, sobre as bases da
indústria nacionalizada e da economia rural coletivizada, surgir uma verdadeira
sociedade socialista. Lenin julgava que a conquista desse objetivo exigia o
trabalho sucessivo de duas ou três gerações, sobretudo realizado em indissolúvel
conexão com a revolução internacional.
Resumindo:
devemos entender por capitalismo de estado, no sentido estrito do termo, a
administração, pelo estado burguês, por conta própria, de empresas industriais
ou outras, ou a intervenção reguladora do Estado burguês no funcionamento das
empresas capitalistas privadas. Lenin entendia por capitalismo de Estado
"entre aspas" o controle do estado proletário sobre as empresas e
relações capitalistas privadas. Nenhuma dessas definições se aplica, sob nenhum
ponto de vista, à atual economia soviética. Continua sendo um profundo mistério
qual o conteúdo econômico concreto que o próprio Urbahns atribui à sua
caracterização do "capitalismo de Estado" soviético. Para falar
francamente, sua mais nova teoria está inteiramente construída sobre uma
citação mal lida.
Existe
ainda outra teoria referente ao "caráter não-proletário’’ do estado
soviético, muito mais engenhosa, muito mais cautelosa, mas nem por isso mais
seria. O social-democrata francês Lucien Laurat, colega de Blum e mestre de
Souvarine, escreveu um folheto defendendo a posição de que o estado soviético,
que não é nem proletário nem burguês, representa um tipo absolutamente novo de
organização de classe, porque a burocracia domina não só política, mas também
economicamente o proletariado, porque devora a mais-valia que antes ia parar
nas mãos da burguesia. Laurat escora suas revelações nas contundentes fórmulas
d’O Capital, e dessa maneira outorga um ar de profundidade à sua
"sociologia" superficial e puramente descritiva. Evidentemente esse
compilador não sabe que toda a sua teoria foi formulada há trinta anos, com
muito mais fogo e esplendor, pelo revolucionário russo-polonês Majaiski,
superior a seu divulgador francês porque não esperou a Revolução de Outubro,
nem a burocracia stalinista para definir a "ditadura do proletariado"
como um trampolim para que uma burocracia exploradora alcance os postos de
comando. Mas não foi sequer Majaiski quem inventou essa teoria; ele não fez
mais que "aprofundar" sociológica e economicamente os preconceitos
anarquistas contra o socialismo de estado. Além disso, Majaiski também utilizou
as formulações de Marx, mas de maneira muito mais coerente que Laurat; segundo
ele, o autor d’O Capital, com previdente malícia, ocultou em suas fórmulas
sobre a reprodução (volume II) a parte da mais-valia que seria devorada pela
intelectualidade socialista (burocracia).
Em
nossa época, Miasnikov defendeu uma "teoria" similar, embora sem
denunciar Marx como explorador; proclamou que na União soviética, a ditadura do
proletariado havia sido suplantada pela hegemonia de uma nova classe, a
burocracia social. Provavelmente, Laurat tomou sua teoria, direta ou
indiretamente, de Miasnikov, embora revestindo-a com um pedantesco ar
"ilustrado". Para completar, é necessário acrescentar que Laurat assimilou
todos os erros (e somente os erros) de Rosa Luxemburgo, inclusive aqueles aos
quais ela mesma havia renunciado.
Mas
examinemos mais de perto a própria "teoria". Para um marxista, o
termo classe tem um significado especialmente importante e também
cientificamente rigoroso. Uma classe não se define apenas por sua participação
na distribuição da renda nacional, e sim por seu papel independente na
estrutura econômica geral e por suas raízes independentes nos fundamentos
econômicos da sociedade. Cada classe (a nobreza feudal, o campesinato, a
pequena-burguesia, a burguesia capitalista e o proletariado) exerce suas
próprias formas específicas de propriedade. A burocracia carece dessas
características sociais. Não ocupa uma posição independente no processo de
produção e distribuição. Não tem raízes de propriedade independentes. Suas
funções se relacionam basicamente com a técnica política do domínio de classe.
A existência de uma burocracia, em suas diversas formas e com diferenças em seu
peso específico, caracteriza todo regime de classes. Seu poder é de caráter
reflexo. A burocracia está indissoluvelmente ligada a uma classe econômica
dominante, alimenta-se das raízes sociais desta, se sustenta e cai junto com
ela.
EXPLORAÇÃO
DE CLASSE E PARASITISMO SOCIAL
Laurat
dirá que "não tem objeções" a que a burocracia receba pagamento pelo
seu trabalho, na medida em que cumpra com as funções políticas, econômicas e
culturais necessárias; o problema reside em sua apropriação incontrolada de uma
parte absolutamente desproporcional da renda nacional; precisamente neste
sentido aparece como a "classe exploradora". Esse argumento, baseado
em fatos indiscutíveis, não muda, contudo, a fisionomia social da burocracia.
Sempre
e em todo regime a burocracia devora uma porção considerável de mais-valia.
Seria interessante, por exemplo, calcular que porção da renda nacional devoram,
na Itália ou na Alemanha, os gafanhotos fascistas. Mas este fato, que em si não
carece de importância, é totalmente insuficiente para transformar a burocracia
fascista numa classe dominante independente. São os mercenários da burguesia. É
verdade que estes mercenários montam na garupa de seu patrão, às vezes lhe
arrancam da boca os bocados mais suculentos e ainda por cima lhe cospem na cara.
Digam o que disserem, são mercenários sumamente incômodos! Mesmo assim, não
passam de mercenários. A burguesia os tolera porque precisa deles para que ela
e seu regime não sejam levados para o inferno.
Mutatis
mutandis, o que foi dito acima vale também para a burocracia stalinista.
Devora, desperdiça e rouba uma porção considerável da renda nacional. Sua
administração custa muito caro ao proletariado. Ocupa na sociedade soviética
uma posição extremamente privilegiada, não só porque goza de prerrogativas
políticas e administrativas, mas também de enormes vantagens materiais.
Contudo, os maiores apartamentos, os bifes mais suculentos e os Rolls-Royce não
bastam para transformar a burocracia numa classe dominante independente.
Certamente,
numa sociedade socialista seria absolutamente impossível a desigualdade, e mais
ainda uma desigualdade tão óbvia. Mas, apesar das mentiras oficiais e
semi-oficiais, o atual regime soviético não é socialista e sim transitório.
Ainda arrasta a monstruosa herança do capitalismo, particularmente a
desigualdade social, não somente entre a burocracia e o proletariado como
também dentro da própria burocracia e dentro do proletariado. Nesta etapa, a
desigualdade continua sendo, dentro de certos limites, o instrumento burguês do
progresso socialista; os salários diferenciados, os bônus etc., são utilizados
como estímulos para a produção.
Ainda
que explique a desigualdade, o caráter transitório do atual sistema de nenhum
modo justifica esses monstruosos e evidentes privilégios que se arrogaram os
incontroláveis dirigentes da burocracia. A Oposição de Esquerda não esperou as
revelações de Urbahns, Laurat, Souvarine, Simone Weil [3] etc., para anunciar que
a burocracia, em todas as suas manifestações, está esmagando as raízes morais da
sociedade soviética, gerando uma aguda e lícita insatisfação entre as massas e
preparando o terreno para grandes perigos. Contudo, por si mesmos, os
privilégios da burocracia não mudam as bases da sociedade soviética, porque ela
não retira seus privilégios de relações de propriedade especiais que lhes sejam
peculiares como "classe", mas sim das relações de propriedade criadas
pela Revolução de Outubro, fundamentalmente adequadas à ditadura do
proletariado.
Para
falar claramente, na medida em que a burocracia rouba o povo (e o fazem, de
diferentes maneiras, todas as burocracias), não estaremos diante da exploração
de classe, no sentido científico do termo, e sim do parasitismo social, mas em
escala muito ampla. Na Idade Média, o clero constituía uma classe ou estamento,
já que seu domínio dependia de um determinado sistema de propriedade da terra e
trabalho forçado. A Igreja atual não constitui uma classe exploradora mas uma
corporação parasitária. Seria realmente uma estupidez falar do clero
norte-americano como de uma classe dominante específica; contudo é indubitável
que nos Estados Unidos os sacerdotes de diferentes cores e denominações devoram
uma grande porção de mais-valia. Por seus traços de parasitismo, a burocracia,
tal como o clero, se assemelha ao lumpen-proletariado que, como se sabe,
tampouco representa uma "classe" independente.
O
problema estará formulado com mais amplitude se não o encararmos estática mas,
sim, dinamicamente. Na medida em que se apropria improdutivamente de uma
tremenda porção da renda nacional, a burocracia soviética, por suas próprias
funções, tem interesse no avanço econômico e cultural do país; quanto maior a
renda nacional, maiores serão seus privilégios. Ao mesmo tempo, sobre os
fundamentos sociais do estado soviético, o progresso econômico e cultural das
massas trabalhadoras tende necessariamente a solapar as próprias bases da
dominação burocrática. Obviamente, à luz desta afortunada variante histórica, a
burocracia passa a ser apenas o instrumento — um instrumento ruim e caro — do
estado socialista.
Mas,
poderão argumentar, ao apropriar-se de uma porção cada vez maior da renda
nacional e perturbar as proporções básicas da economia, a burocracia atrasa o
desenvolvimento econômico e cultural do país. Absolutamente correto! A
continuidade do crescimento desenfreado do burocratismo deve levar
inevitavelmente ao estancamento do crescimento econômico e cultural, a uma
terrível crise social e à deterioração de toda a sociedade. Mas isso implicaria
não só a liquidação da ditadura do proletariado, como também o fim da dominação
burocrática. O estado operário não seria substituído por relações
"social-burocráticas", mas sim capitalistas.
Confiamos
que, ao colocar a questão desta perspectiva, poderemos resolver, de uma vez por
todas, a controvérsia sobre o caráter de classe da URSS. Tanto se tomarmos a
variante de êxito futuro do regime soviético ou, pelo contrário, a de sua
liquidação, em ambos os casos a burocracia não se revela uma classe
independente, e sim uma excrescência do proletariado. Um tumor pode aumentar
tremendamente de tamanho e até estrangular o organismo vivo, mas não pode
transformar-se num organismo independente.
Por
fim, cabe acrescentar, para maior clareza, que se hoje o partido marxista
estivesse no poder na URSS, iria renovar todo o regime político, iria deixar de
lado a burocracia, expurgá-la e colocá-la sob controle das massas, iria
transformar as práticas administrativas e inaugurar uma série de reformas
fundamentais na administração da economia; mas de nenhuma maneira teria que se
propor a uma mudança nas relações de propriedade, ou seja, a uma nova revolução
social.
A
burocracia não é uma classe dominante. Mas o ulterior desenvolvimento do regime
burocrático pode levar não organicamente, por degeneração, mas através da
contra-revolução ao surgimento de uma nova classe dominante. Chamamos de
centrista o aparato stalinista precisamente porque desempenha um duplo papel:
hoje, quando já não existe uma direção marxista, e nenhuma perspectiva imediata
de que surja, defende com seus próprios métodos a ditadura proletária; mas
estes métodos facilitam a futura vitória do inimigo. Quem não entende este
duplo papel desempenhado pelo estalinismo na URSS, não entende nada da questão.
Na
sociedade socialista não haverá partido nem estado. Mas na etapa de transição,
a superestrutura política desempenha um papel decisivo. Uma ditadura do
proletariado desenvolvida e estável pressupõe que o partido funcione como
vanguarda, cumprindo as funções de direção, que o proletariado esteja unificado
nos sindicatos, que os trabalhadores estejam indissoluvelmente ligados ao
estado através do sistema de sovietes e finalmente que, através da
Internacional, o estado operário crie uma unidade combatente com o proletariado
mundial. Por enquanto, a burocracia estrangulou o partido, os sindicatos, os
sovietes e a Internacional Comunista. Nem é preciso explicar aqui que à
social-democracia internacional, tão manchada por crimes e traições — e à qual,
diga-se de passagem, pertence o senhor Laurat [4] —, cabe uma gigantesca parte da
culpa pela degeneração do regime proletário.
Mas
seja qual for a repartição real da responsabilidade histórica, o resultado
continua sendo o mesmo: o estrangulamento do partido, dos sovietes e dos
sindicatos acarreta a atomização política do proletariado. Os antagonismos
sociais, em vez de serem superados politicamente, são suprimidos
administrativamente. Na medida em que desaparecem os recursos políticos para
resolvê-los normalmente, ficam reprimidos. O primeiro choque social, externo ou
interno, pode lançar à guerra civil a atomizada sociedade soviética. Os
operários, perdido o controle do estado e da economia, podem fazer das greves
de massa uma arma defensiva. Isto romperia a disciplina da ditadura. Perante o
ataque dos trabalhadores e a pressão das dificuldades econômicas, os trustes se
veriam obrigados a abandonar a planificação e entrar em concorrência entre si.
A dissolução do regime repercutiria no campo com um eco violento e caótico e,
inevitavelmente, recairia sobre o exército. O Estado socialista desapareceria,
dando lugar ao regime capitalista ou, mais precisamente, ao caos capitalista.
Certamente,
a imprensa stalinista reproduzirá esta análise preventiva como se fosse uma
profecia contra-revolucionária, ou até um "desejo" explícito dos
trotskistas. No que diz respeito a esses escritores de aluguel do aparato, faz
muito tempo que não temos outro sentimento que o de um silencioso desprezo. Em
nossa opinião, a situação é perigosa, mas não totalmente desesperadora. De
qualquer forma, seria um ato de profunda covardia e de traição direta dar por
perdida, antes de travá-la, a maior das batalhas revolucionárias.
Se
é verdade que a burocracia concentrou em suas mãos todo o poder e todas as vias
de acesso ao poder — e assim é —, surge uma pergunta muito importante: como
encarar a reorganização do estado soviético? É possível alcançar este objetivo
com métodos pacíficos?
Antes
de mais nada, temos que estabelecer como axioma imutável que o único que pode
alcançar este objetivo é um partido revolucionário. A tarefa histórica
fundamental é criar na URSS o partido revolucionário, com os elementos sadios
do velho partido e com a juventude. Veremos adiante sob quais condições é
possível conseguir isso. Suponhamos, contudo, que esse partido já existe.
Através de que meios poderia tomar o poder? Já em 1927, Stalin disse,
dirigindo-se à Oposição: "Só se pode eliminar a atual burocracia através
da guerra civil’’. Esse desafio bonapartista não tinha como destinatário a
Oposição de Esquerda, mas o próprio partido. Após concentrar em suas mãos todas
as alavancas do poder, a burocracia proclamou abertamente que não permitiria
que o proletariado voltasse a levantar a cabeça. O curso posterior dos
acontecimentos tornou ainda mais contundente este desafio. Após as experiências
dos últimos anos, seria infantil supor que se possa eliminar a burocracia
stalinista através de um congresso do partido ou dos sovietes. Na realidade, o
último congresso do Partido Bolchevique, o décimo-segundo, teve lugar a
princípios de 1923. Todos os seguintes foram farsas burocráticas. E hoje até
estes foram descartados. Não restam caminhos "constitucionais"
normais para remover a camarilha dominante. Só pela força se poderá obrigar a
burocracia a deixar o poder nas mãos da vanguarda proletária.
Imediatamente
uivarão em coro os escritores de aluguel: os "trotskistas", como
Kautsky, pregam a insurreição armada contra a ditadura do proletariado. Não
vamos perder tempo com eles. O problema da tomada do poder se colocará
praticamente ao novo partido quando este houver consolidado ao seu redor a
maioria da classe operária. No processo dessa mudança radical na relação de forças,
a burocracia se isolará e dividirá cada vez mais. Como sabemos, as raízes
sociais da burocracia estão implantadas no proletariado, se não em seu apoio
ativo, pelo menos na sua "tolerância". Quando o proletariado entrar
em ação, o aparato stalinista ficará suspenso no ar. Se tentar resistir, terá
que aplicar medidas, não de guerra civil, mas de caráter policial. De qualquer
maneira, não se tratará de insurreição armada contra a ditadura do
proletariado, mas da remoção de uma maligna excrescência.
A
verdadeira guerra civil não se daria entre a burocracia stalinista e o
proletariado insurgente, mas entre o proletariado e as forças ativas da
contra-revolução. Nem há que falar que a burocracia possa desempenhar um papel
independente no choque aberto entre os dois lados. Seus extremos se alinhariam
em lados opostos da barricada. É claro que o desenvolvimento do processo será
determinado pelo resultado da luta. O triunfo do lado revolucionário só é
concebível sob a direção de um partido proletário, que seria naturalmente
elevado ao poder pela vitória sobre a contra-revolução.
O
que é mais provável, o perigo de liquidação do poder soviético esgotado pelo
burocratismo ou a consolidação do proletariado em tomo de um novo partido capaz
de salvar a herança de Outubro? Não existe resposta a priori para essa
pergunta: a luta decidirá. Uma grande prova histórica talvez uma guerra
determinará a relação de forças. Mas é evidente que não se poderá continuar a
manter o poder soviético só com o apoio das forças internas, se continuar o
retrocesso do movimento proletário mundial e a extensão da dominação fascista.
A condição fundamental para reformar totalmente o poder soviético é a expansão
vitoriosa da revolução mundial.
No
Ocidente, o movimento revolucionário pode ressurgir, mesmo que não haja
partido, mas não poderá tomar o poder sem essa direção. Em toda a época da
revolução social, ou seja, durante décadas, o partido mundial foi o instrumento
básico do progresso histórico. Urbahns, ao proclamar que as "velhas formas"
estão superadas e que é necessário algo "novo" — o que precisamente?
—, não faz mais do que demonstrar a sua confusão.., de forma não menos velha. O
trabalho sindical, nas condições do capitalismo "planificado", e a
luta contra o fascismo e a guerra iminente originarão, indubitavelmente, novos
métodos e novos tipos de organização de luta. Só que, em vez de entregar-se,
como os brandleristas, a fantasias sobre os sindicatos ilegais, há que estudar
atentamente o curso real da luta, partindo das iniciativas dos próprios
trabalhadores para estendê-las e generalizá-las. Mas para realizar esta tarefa
é necessário, em primeiro lugar, um partido, ou seja, uma organização
politicamente homogênea da vanguarda proletária. A posição de Urbahns é
subjetiva; desiludiu-se do partido após ter levado ao desastre o seu próprio
"partido".
Uns
tantos novidadeiros proclamam que "faz muito tempo" diziam que são
necessários novos partidos; agora, finalmente, os "trotskistas"
chegaram à mesma conclusão; com o tempo, também compreenderão que a União
Soviética não é um estado operário. Esta gente, em vez de estudar o processo
histórico real, dedica-se a "descobrimentos" astronômicos. Já em
1921, a seita de Gorter e o "Partido Comunista Operário" da Alemanha
decidiram que a Internacional Comunista estava condenada. Desde então, não
escassearam prognósticos desse tipo (Loriot, Korsch, Souvarine etc.). Contudo,
nada resultou destes "diagnósticos", porque refletiam apenas a
desilusão subjetiva de determinados círculos e personalidades, e não as
exigências objetivas do processo histórico. É precisamente por esta razão que
estes novidadeiros vociferantes continuam à margem do processo [5].
O
curso dos acontecimentos não segue um caminho predeterminado. Com a sua
capitulação perante o fascismo, a Internacional Comunista ficou desacreditada
perante as massas, não perante determinados indivíduos. Mas, mesmo depois do
colapso da Internacional, continua existindo o Estado soviético, embora sua
autoridade tenha diminuído bastante. Há que tomar os fatos como são realmente,
e não teimar e morder os lábios como Simone Weil; não devemos ofender-nos com a
história nem virar-lhe as costas.
Os
novos partidos e a nova internacional, antes de mais nada, devem construir-se
sobre bases sérias, principistas, que estejam à altura das necessidades da
nossa época. Não alimentamos ilusões a respeito das deficiências e erros da
bagagem teórica dos bolcheviques leninistas. Contudo, seu trabalho de dez anos
criou as condições teóricas e estratégicas básicas para a construção da nova
internacional.
Ombro
a ombro com nossos aliados, impulsionaremos estas condições e as
concretizaremos em base à crítica desenvolvida no processo real da luta.
A
QUARTA INTERNACIONAL E A URSS
Na
URSS, o núcleo do novo partido na realidade o partido bolchevique ressurgido
sob novas condições — será o grupo dos bolcheviques leninistas. Até a imprensa
oficial soviética testemunha que nossos adeptos realizam seu trabalho
valentemente e não sem êxito. Mas não cabe alimentar ilusões: o partido do
internacionalismo revolucionário só poderá livrar os operários da influência
corruptora da burocracia nacional se a vanguarda proletária internacional
aparecer novamente, como força combatente na arena mundial.
Desde
o início da guerra imperialista, e mais ainda desde a Revolução de Outubro, o
Partido Bolchevique foi a direção da luta revolucionária mundial. Hoje perdeu
totalmente essa posição. Não nos referimos apenas à caricatura oficial do
partido. As condições sumamente difíceis em que trabalham os bolcheviques
leninistas russos excluem a possibilidade de que venham a ter um papel
dirigente a escala internacional. Mais ainda, na URSS o grupo da Oposição de
Esquerda só poderá transformar-se em um novo partido como conseqüência do êxito
na formação e no crescimento da nova internacional. O centro de gravidade
revolucionário deslocou-se definitivamente para o Ocidente, onde são
imensamente maiores as possibilidades imediatas de construir partidos.
Sob
a influência das trágicas experiências dos últimos anos, no proletariado de
todos os países existem muitos elementos revolucionários que esperam um chamado
claro e um estandarte sem mácula. É certo que as convulsões da Internacional
Comunista jogaram, por toda parte, novos setores operários para a social
democracia. Mas precisamente esse afluxo de massas alarmadas constitui o perigo
mortal para o reformismo, que está sendo ultrapassado, desintegrando-se em
frações e dando à luz, por toda parte, alas revolucionárias. Estas são as
condições políticas imediatas que favorecem a nova internacional. Já foi
assentada a pedra fundamental, a declaração de princípios das quatro
organizações.
É
indispensável, para obter êxitos maiores, fazer uma caracterização correta da
situação mundial, incluindo o caráter de classe da União Soviética. Neste
sentido, a nova internacional será posta à prova desde os primeiros dias de sua
existência. Antes de estar em condições de reformar o estado soviético, deverá
assumir a sua defesa.
Toda
tendência política que, desesperançada, diz adeus à União Soviética, sob o
pretexto de seu caráter "não-proletário", corre o risco de
transformar-se em instrumento passivo do imperialismo. Evidentemente, nossa
perspectiva não exclui a trágica possibilidade de que o primeiro estado
operário, debilitado por sua burocracia, venha a cair sob os golpes
mancomunados de seus inimigos internos e externos. Mas, se isto ocorrer, a pior
das variantes possíveis, adquirirá enorme importância para o curso posterior da
luta revolucionária, perguntar quem seriam os culpados da catástrofe. Sobre os
internacionalistas revolucionários não deve cair nem sombra de culpa. Na hora
do perigo mortal, terão que resistir até a última das trincheiras.
É
quase certo que hoje a ruptura do equilibrio burocrático na URSS serviria às
forças contra-revolucionárias. Contudo, se existisse uma internacional
genuinamente revolucionária, a crise inevitável do regime estalinista abriria a
possibilidade de um ressurgimento. Esta é nossa orientação básica.
A
cada dia que passa, a política externa do Kremlin assesta novos golpes ao
proletariado mundial. Distanciados das massas, os funcionários diplomáticos
dirigidos por Stalin pisoteiam os mais elementares sentimentos revolucionários
dos trabalhadores de todos os países, em detrimento, fundamentalmente, da
própria União Soviética. Mas isto não é nada de novo. A política externa da
burocracia é um complemento de sua política interna. Nós combatemos ambas. Mas
travamos nossa luta da perspectiva da defesa do Estado operário.
Os
funcionários da decadente Internacional Comunista continuam, nos vários países,
jurando lealdade à União Soviética. Seria uma estupidez imperdoável construir
qualquer coisa sobre esses juramentos. Para a maioria dessas pessoas, a
proclamada "defesa" da URSS não é uma convicção e sim uma profissão.
Não lutam pela ditadura do proletariado; seguem as pegadas da burocracia
stalinista (ver, por exemplo, l’Humanité). No momento da crise, a
"barbussizada" Internacional Comunista será incapaz de oferecer à
União Soviética um apoio maior do que a oposição que ofereceu a Hitler. Com os
internacionalistas revolucionários, é diferente. Vilmente perseguidos, há uma
década, pela burocracia, chamam infatigavelmente os trabalhadores a defender a
União Soviética.
No
dia em que a nova internacional demonstrar aos operários russos, nos fatos e
não só em palavras, que só ela se coloca na defesa do estado operário, a
situação dos bolcheviques leninistas dentro da URSS mudará em vinte e quatro
horas. A nova internacional chamará a burocracia stalinista a fazer
frente-única contra o inimigo comum. E se nossa internacional representar uma
força, a burocracia não poderá evitar a frente-única no momento do perigo. Que
restará então das mentiras e calúnias de tantos anos?
Mesmo
no caso de guerra a frente-única com a burocracia stalinista não será uma
"santa aliança" ao estilo dos partidos burgueses e social-democratas,
que durante a contenda imperialista suspenderam a crítica recíproca para melhor
enganar o povo. Não; mesmo nessas circunstâncias manteremos nossa
intransigência crítica frente ao centrismo burocrático, que não poderá ocultar
sua incapacidade para dirigir uma verdadeira guerra revolucionária.
Tanto
o problema da revolução mundial como o da União Soviética podem ser
sintetizados em uma única e breve expressão: a Quarta Internacional.
Notas
1-
Nota de Leon Trotsky: Os Sagazes brandleristas norte-americanos (o grupo de
Lovestone) complicam a questão: para eles, a política econômica do stalinismo é
impecável, mas o regime político da URSS é ruim, já que não há democracia. Não
passa pela cabeça desses teóricos perguntar-se por que Stalin liquida a
democracia, se sua política econômica é correta e tem êxito? Será por temer que
a democracia proletária permita ao partido e a classe operária expressar muito
mais ativa e violentamente o seu entusiasmo pela política econômica?
2-
(N.L.T): Quem se interessar – se houver alguém – que se informe por sua conta
própria sobre a "plataforma" dos "democratas (!)
comunistas". Do ponto de vista dos fundamentos do marxismo, é difícil
conceber documento mais repleto de charlatanice.
3-
(N.L.T): Desolada com as "infrutíferas" experiências da ditadura do
proletariado, Simone Weil encontrou alívio numa nova vocação: a defesa de sua
personalidade contra a sociedade. A desgastada fórmula do liberalismo,
revitalizada por uma barata exaltação anarquista! Dá o que pensar: Simone Weil
refere-se, altaneira, às nossas "ilusões". Ela e os que são como ela
precisam de anos de tenaz perseverança para conseguirem se libertar dos demais
reacionários preconceitos da baixa classe média. Muito adequadamente, suas
novas posições encontram abrigo numa publicação que leva o nome, evidentemente
irônico, "La Révolution Prolétarienne". Essa publicação de Louzon é
ideal para os nostálgicos da revolução e os rendeiros da política, que vivem
dos dividendos de seu capital de recordações, e para os filósofos pretensiosos
que talvez venham a aderir à revolução... depois que esta tiver sido realizada.
4-
(N.L.T): Esse profeta acusa os bolcheviques leninistas russos de falta de
audácia revolucionária. Confundindo, bem ao estilo austro-marxista, a revolução
com a contra-revolução e o retorno à democracia burguesa com a preservação da
ditadura proletária, Laurat dá lições a Rokovski sobre a luta revolucionária.
Esse mesmo senhor considera Lenin um "teórico medíocre". Não é de
admirar! Lenin, que formulou da maneira mais simples as mais complexas
conclusões teóricas, não pode superar esse pretensioso filisteu que nos
despeja, com ares cabalísticos, suas pobres e tediosas generalizações. Uma boa
inscrição para seu cartão de visitas: "Lucien Laurat: por vocação, teórico
e estrategista de reserva da revolução proletária... na Rússia; por profissão,
assistente de Léon Blum". É uma inscrição meio longa, mas correta. Dizem
que esse teórico conta com partidários entre a juventude. Pobre juventude!
5-
(N.L.T): Isto não se aplica às organizações que romperam com a
social-democracia há relativamente pouco tempo, ou que tiveram uma evolução
particular (como o Partido Socialista Revolucionário da Holanda), e que
naturalmente se recusaram a unir sua sorte à da Internacional Comunista em sua
época de decadência. As melhores dessas organizações estão adotando as bandeiras
da nova internacional. Outras a seguirão.