Fernando Matos Rodrigues e Manuel Carlos Silva (CICS.Nova_UM/LAHB)
Ilustração de Nathalie Afonso
O programa “Bairros Saudáveis” com base na Resolução do Conselho de Ministros 52-A/2020 surge em contexto de pandemia Covid19, preocupante na Região de Lisboa, mas conjunturalmente potenciadora de um ambiente político propicio a programas de vigilância intensiva em nome da manutenção da ordem pública, da salubridade e do higienismo sanitário sobre populações de bairros populares, fustigadas pela disseminação do vírus.Esta Resolução Governamental com programa de âmbito nacional alega ser um instrumento participativo na promoção de iniciativas de saúde, sociais, económicas, ambientais e urbanísticas junto das comunidades locais atingidas pela pandemia.
Apresenta três eixos de intervenção prioritária: o sanitário, o económico e o urbanístico-ambiental, parecendo-nos demasiada carga para uma tão exígua potência económica, reduzida a residuais dez milhões de euros para distribuir pelo país sob uma tipologia de concursos e contando com ‘voluntários’ de redes e parcerias.
O documento é essencialmente um texto proclamatório de princípios e medidas perpassadas de retórica assistencialista, de ‘coesão social’, de ‘empreendedorismo’, assente no alegado ‘capital social’, mais próprio de um Estado descomprometido do necessário investimento público mas eivado de princípios de governamentalidade e controlo social e normativo; elogia a resiliência e apela à participação das comunidades mas manipula e não põe em prática os instrumentos participativos da Lei de Bases da Habitação (Lei 83/2019 de 3/9), verificando-se, a nível nacional e municipal, uma política permissiva de despejos ao sabor dos interesses imobiliários, da gentrificação e da turistificação.
Trata-se de um Programa que, independentemente das proclamações e boas intenções de cariz assistencialista, conjuntural ou até pontual, reforça o estigma, o olhar classificatório sobre a identidade deteriorada dos moradores/as dos bairros populares de Lisboa e do Porto, nomeadamente na atual pandemia.
Alega a necessidade de promover estilos de vida saudáveis com a implementação deste programa nacional, mas sem fornecer recursos e instrumentos de politicas sociais e habitacionais mais robustas. Mais, ignora que os moradores/as destas comunidades vivem, na grande maioria, abandonados/as, sem transportes adequados e seguros, sem direito a uma habitação digna, explorados/as na sua condição de trabalhadores/as precários/as e com remunerações que os lançam para um estado de miséria económica e de exclusão social.
Acresce ainda que se lhes cola o rótulo de pessoas de risco, desestruturadas, sem estilos de vida saudáveis e até potencialmente perigosas, ignorando as desigualdades estruturais, as situações de segregação socio-espacial e amiúde de discriminação étnico-racial. Por fim, para além de estigmatizar como contaminantes e ‘irresponsáveis’ os trabalhadores/as no 1.o de Maio e sobretudo os manifestantes de lutas antirracistas, reforça a onda da (extrema)direita (do Chega ao CDS/PSD) que não reconhecem racismo em Portugal e camuflam as desigualdades e lutas de classe, étnicas e de género.
Por detrás do apelo à habitação participada e colaborativa esconde-se um velho e bolorento assistencialismo higienista que nada traz de novo, mas que, mais que um Estado social, reafirma normas de um Estado vigilante e mesmo punitivo, pouco preocupado com a promoção do direito à habitação e à cidade mas mais interessado em apresentar à UE e ao mundo uma imagem de um país ‘responsável’ e ‘exemplar’ no combate à pandemia (e por causa do turismo!), acolitando o ‘milagre’ do Presidente da República!
Estamos perante a afirmação de um Estado normativo e interventivo no espaço público e inclusive no espaço comunitário na medida em que ele rotula comportamentos dos moradores/as dos bairros periféricos de Lisboa e Porto, como se o problema da contaminação fosse da responsabilidade destes, quando estão ausentes as condições de bem-estar e habitação que o Estado português lhes tem negado ao longo de décadas. No mínimo pedir-se-ia ao Estado e às Câmaras parar todo e qualquer despejo.
No fundo, estamos perante uma visão elitista porque não apresenta recursos financeiros para atribuir casa a quem não a tem, se considerarmos o desinvestimento estatal crónico e o conjuntural orçamento de dez milhões de euros para a habitação, saúde, economia e ambiente, divididos em programas ou candidaturas que vão até a um valor máximo de 50 mil euros cada.
Este programa, sem a necessária dotação orçamental, sem estratégia e sem cronograma, não nos parece sério, sendo apenas uma gota num oceano de necessidades.
Após a aprovação da Lei de Bases da Habitação seria normal e desejável que o Governo convocasse pelo menos os principais partidos e obreiros da Lei de Bases da Habitação (PS, BE e PCP/PEV) e fizesse a devida regulamentação e as necessárias alterações ao Código Civil e ao Código Administrativo, à Lei do Arrendamento Urbano, promovendo as alterações aos regulamentos municipais de habitação, sem esquecer a urgência em dotar de meios materiais e humanos o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) num organismo com sedes distritais/regionais, capazes de implementar e políticas públicas de habitação e de cidade justa.