Mário Maestri *
O Brasil foi uma das primeiras nações americanas a instituir a escravidão colonial, em 1530, e a última a aboli-la, em 1888. O escravismo dominou dois terços de nossa história. Não houve região do Brasil totalmente à margem da instituição. Apesar da superação do escravismo constituir o mais significativo fato histórico do passado brasileiro, atualmente, o 13 de Maio constitui transcurso pouco celebrado e desvalorizado.
A Abolição já foi tida como data magna da história do Brasil, festejada com destaque. Nos últimos anos, devido às críticas radicais ao 13 de Maio da imensa maioria dos ativistas do movimento negro organizado, a Abolição tem sido objeto de desqualificação histórica e simbólica.
O caráter transigente e pacífico do brasileiro foi mito fundador oficial de nossa nacionalidade. A abolição da escravatura foi apresentada como prova da pretensa cordialidade brasileira. No exterior, o fim da instituição motivou lutas fratricidas. No Haiti, em 1804, ela ensejou violentíssima guerra social. Em 1861-1865, a guerra de Secessão, pela manutenção ou fim do escravismo, causou mais de quinhentos mil mortos nos EUA.
No Brasil, a transição do trabalho escravizado ao livre teria ocorrido sem violências, devido à nossa alma e instituições transigentes. Nesse cenário, refugiria a figura de Isabel, a Redentora. Apiedada com os negros e despreocupada com a Monarquia, assinou com pena de ouro o diploma que pôs fim ao cativeiro, com o apoio do seu pai, o Imperador.
Com o fim da instituição medonha, começaria a construção de sociedade fraterna. Desde então, não haveria barreiras intransponíveis de classe, entre ricos e pobres, ou de cor, entre brancos e não brancos. Gilberto Freyre consagrou-se propondo que a magnânima do brasileiro nascera da refundação do mundo ocidental nos trópicos, com a instituição escravista patriarcal, que irmanou europeus, americanos e africanos, saltando as barreiras de raça, credoe classe. Os sucessos magnos pátrios, a Independência, em 1822, a Abolição, em 1888, e a República, em 1889,registrariam o caráter cordato da civilização brasileira. A Independência deu-se com pouca luta retornando-se imediatamente à concórdia entre portugueses e brasileiros. O mesmo ocorreria com a proclamação da República.
Nos anos finais da ditadura de 1964, no contexto da mobilização popular,entidades negras combativas denunciaram a demagogia de democracia racial que mascarava a dura realidade do país, trincando a retórica laudatória sobre 1888, sobre a escravidão feliz e sobre o caráter fraterno da sociedade brasileira.Apontavam realidade onde grande parte do povo negro constituía uma das parcelas mais sofridas de população fortemente explorada. Uma sociedade onde a pele escura dificultava a conquista do trabalho e facilitava e o acesso à prisão e, não raro, ao necrotério.
Nos anos 1960, aquelas apologias foram refutadas por estudiosos rigorosos, com destaque para Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, que registraram a violência do escravismo e suas sequelas atuais não apenas para a população com alguma afro-descendência. Porém, esses estudos definiram a Abolição como uma espécie de “negócio entre os brancos”, onde os cativos não tiveram papel significativo e ganhos efetivos. Esses trabalhos construíram a base pretensamente científica da refutação de 1888 pelo movimento negro organizado, nos anos 1980.
Aqueles autores haviam refutado também o papel do trabalhador escravizado como demiurgo do devir da antiga formação social brasileira, negando efetividade às lutas sociais dos cativos, espécie de figurante mudo, incapaz de girar a roda da história. O papel de Prometeu, na transição ao trabalho livre, foi entregue ao escravista progressista, do oeste paulista, e ao imigrante industrialista.
Em 1988, quando das celebrações do I Centenário da Abolição, o movimento negro organizado abraçou acriticamente essas teses, para denunciar a situação então vivida por boa parte da população com alguma afro-descendência. “Nada mudou, vamos mudar”, gritou-se, na Candelária, no Rio de Janeiro. Defendeu-se que a Abolição ocorrera sem indenização dos cativos; que os abolicionistas buscavam mão-de-obra barata. Chegou-se a propor que a Abolição piorou as condições dos escravizados, tese de Gilberto Freyre e dos escravistas e ex-escravistas.
O movimento negro organizado propôs a abominação do 13 de Maio e a celebração do 20 de Novembro, data da morte de [N]Zumbi, em 1695, o último grande chefe político-militar da confederação dos quilombos de Palmares, como Dia Nacional da Consciência Negra. Proposta difundida também pela grande mídia.
Essas leituras bem intencionadas consolidaram as apologias de sociedade sem rupturas sociais. Os ideólogos das classes dominantes haviam se desdobrado para escamotear a Abolição como resultado do esforço dos trabalhadores escravizados aliados aos abolicionistas radicalizados, apresentando-a, como ato magnânimo imperial. Contribuíam para o esquecimento do sentido seminal do mais importante acontecimento do passado brasileiro - a revolução abolicionista de 1887-8.
Celebrar a Abolição não significa reafirmar os mitos da emancipação plena do cativo em 1888 e de Isabel como Redentora. Significava recuperar a importância daquela superação, conquistada por uma frente política pluri-classista dirigida pelo protagonismo exemplar dos trabalhadores escravizados, no primeiro movimento revolucionário nacional de massas e o único, até agora, vitorioso.
Em forma alienada e imperfeita, após 1888, o povo negro sempre reconheceu e celebrou 1888, batizando seus clubes e associações com o nome de Isabel, de 13 de Maio, de Redenção. A Frente Negra Brasileira [1931-1937], primeiro movimento político nacional negro, sob o lema “Deus, Pátria, Raça e Família”, lutava pela restauração da monarquia.
Nos últimos anos, aquela consciência diluiu-se devido ao proselitismo anti-Abolição, com grave perda da memória histórica objetiva dos trabalhadores, com destaque para os afro-descendentes. Memória difusa substituída por uma frágil tradição inventada por cientistas sociais, no geral bem intencionados. Essas propostas foram abraçadas sem reflexão pela esquerda marxista.
Em inícios de 1980, Mariano Pereira dos Santos, ex-cativo centenário, que vivera após 1888, dizia comovido que, após aquela data o povo negro viveu “na glória”. Maria Chatinha, ex-cativa centenária, descreveu arrebatada o momento em que, em sua fazenda, gritaram a libertação. Em 13 de maio de 1888, nas cidades e nos campos, os tambores e os atabaques festejaram frenéticos, ferindo os tímpanos dos negreiros renitentes.
A visão do 13 de Maio, pelo povo negro, como concessão magnânima da princesa redentora, constitui cristalização alienada na memória popular de acontecimento revolucionário para os cativos e a nação, que as classes dominantes sempre se esforçaram para afogar no esquecimento.
Não há sentido em antepor Palmares, em 1695, à Abolição, em 1888. Mesmo historicamente, o sentido do 13 de maio é superior. A luminar epopeia palmarina, restrita ao sul da antiga capitania de Pernambuco, jamais propôs, e historicamente não poderia ter proposto, a destruição da escravidão como um todo.
A confederação dos quilombos de Palmares resistiu por décadas, iluminou nossa história, mas foi derrotada.
Em 1888, a revolução abolicionista foi vitoriosa, mesmo tardia e com limites. Ela pôs fim ao escravismo colonial, o modo de produção dominante por mais de três séculos, unificando o mundo do trabalho, antes dividido em trabalhadores livres e escravizados.
Desconhecer o sentido revolucionário de 1888 é olvidar a contradição essencial que regeu por mais de trezentos anos a história do Brasil, opondo escravizados e escravizadores. Desconhecer o caráter escravista do passado brasileiro significa olvidar as raízes afro-escravistas singulares do Brasil contemporâneo. É esquecer que, em um sentido sociológico, mais do que racial, nossa população descende de escravizados ou escravizadores.
Nos anos 1950, autores como o sociólogo negro e comunista Clóvis Moura e o francês, surrealista e trotskista Benjamin Péret propuseram pioneiramente a resistência dos cativos como luta de classes no Brasil, interpretação esboçada por Astrojildo Pereira, em 1º de maio de 1929, ao definir sumariamente, Palmares como uma “autêntica luta de classes”.
Nos anos 1960 e 1970, historiadores como Stanley Stein, Emília Viotti da Costa, etc., propuseram a escravidão como produção social dominante. Nos anos seguintes, produziram-se estudos sobre a sociedade, a economia e a resistência do trabalhador escravizado. Finalmente, em forma sintética, Ciro Flamarión Cardoso, e, em forma categorial-sistemática, Jacob Gorender apresentaram o escravismo colonial como modo de produção historicamente novo, em salto de qualidade na análise da antiga formação social brasileira.
Em Os últimos anos da escravidão no Brasil, o brasilianista Robert Conrad historiou a Abolição como o resultado do abandono maciço das fazendas, não sempre incruento, pelos cativos, sobretudo da cafeicultura paulista, nos últimos meses do cativeiro, reivindicando a liberdade civil e, comumente, relações contratuais de trabalho. Nesse momento, o núcleo central dos cafeicultores defendia a exploração dos cativos enquanto fosse possível.
Roberto Conrad lembra que, no Natal de 1886, fracassou plano de abandono maciço de fazendas paulistas, planejado por abolicionistas radicalizados. Nas semanas seguintes, os cativos começaram a fugir, cada vez mais numerosos para as cidades ou empregando-se em outras fazendas. O movimento se massificou, sobretudo em São Paulo, então centro do escravismo.
Nesse contexto, o bloco social escravista se dividiu, optando os cafeicultores paulistas proprietários de terras ricas pelo imigrantismo e, os fluminenses, senhores de terras esgotadas, pela indenização. Os recursos públicos foram aplicados no financiamento da imigração. Com a destruição da ordem escravista e a transição ao trabalho livre, materializava-se a única revolução social até hoje conhecida pelo Brasil.
A Abolição deu-se em contexto de duros confrontos, mesmo armados, entre cativos e abolicionistas de um lado e o Estado e escravistas, do outro,tensão sob a qual o abolicionismo radicalizado alcançou a vitória, em 1888. O movimento abolicionista propunha democratização da sociedade, com distribuição de terras entre ex-cativos e brasileiros pobres.
As relações escravistas de produção já emperravam a expansão da área plantada e da produtividade cafeicultura. Com seu fim, centenas de milhares de italianos, atraídos pelos altos salários e o sonho da terra, chegaram ao país, contribuindo para a conformação do exército rural de reserva, formado de miseráveis, com destaque para os ex-cativos.
A Monarquia surgira e se mantiver defendendo a escravidão e o tráfico negreiro. Com seu fim, novas e mais complexas formas de relações de produção exigiam novas e mais complexas formas de dominação.
Após o 13 de maio, sem o apoio dos fazendeiros, liberados agora do trabalho escravizado, a monarquia tentou galvanizar a simpatia da população negra para a defesa do III Reinado. Em junho de 1889, vitorioso nas eleições, o gabinete liberal de Ouro Preto apresentou programa reformista – voto secreto; ampliação do colégio eleitoral; liberdade de culto e ensino; autonomia provincial. A negativa de acolher as reivindicações federalistas das oligarquias provinciais ea proposta de distribuição de terras favoreceram a deposição do Imperador, apoiada pelos conservadores, derrotados nas eleições, representante dos banqueiros, comerciantes e fazendeiros.
O golpe militar de 15 de novembro de 1889 liquidou o fim ao impulso reformista do abolicionismo vitorioso, pondo fim ao centralismo político monárquico, já sem qualquer apoio das classes dominantes. A Constituição republicana sancionaria o novo ordenamento anti-popular, exportador, latifundiário e sobretudo federalista, apoiado na exploração de diversas formas de trabalho livre. Ela foi sobretudo federalista, exigência da oligarquia dos agora grande estados.Com a República, os conservadores vestiram a casaca republicana e retornaram ao poder, pondo fim às veleidades reformistas liberais e abolicionistas.
Quando populações levantaram-se, confusamente, contra uma ordem que lhes era absolutamente madrasta – como em Canudos, Contestado ou na revolta dos Marinheiros Negros – foram acusadas de barbárie e duramente massacradas.
Durante toda a Monarquia, os Braganças sustentaram e foram sustentados pela escravidão. Em 13 de maio, a herdeira imperial apenas sancionou o projeto de lei aprovado no parlamento, assinando o atestado de óbito de instituição liquidada pela sublevação dos cativos.
Foi a ação estrutural das classes escravizadas, durante os três séculos de cativeiro, que construiu as condições para a destruição da instituição. A rejeição permanente do cativo ao trabalho feitorizado impôs limites insuperáveis ao desenvolvimento da produção escravista, determinando altos gastos de coerção e vigilância, abrindo espaços para formas de produção superiores.
Em 1888, a revolução abolicionista destruiu o modo de produção que ordenara a sociedade. Negar essa realidade devido às condições econômicas, passadas ou atuais, de parte da população negra, é compreender a história em viés a-histórico. Os limites da Abolição eram objetivos. No crepúsculo da escravidão, o cativo era categoria social em declínio que lutava pelos direitos cidadãos mínimos, com destaque para a liberdade civil.
É proposta retórica a impugnação do conteúdo revolucionário da Abolição porque os cativos não foram indenizados.A luta pela liberdade civil, a propriedade latifundiária, a pouca difusão de hortas servis dificultavam a distribuição de parcelas de terras, única possibilidade de indenização, que exigia a união revolucionárias de cativos, libertos, caboclos, posseiros, colonos etc.,impossível nas condições históricas da época. Distribuição de terras defendida pelos abolicionistas e impugnada pela república federativa, em 15 de novembro de 1899, proposta por Robert Conrad como verdadeira contra-revolução.
A história avança a partir do esforço dos explorados -do escravismo ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo, etc,- sem obter emancipação total dos produtores diretos - tarefa da revolução proletária, devido ao desenvolvimento das forças produtivas materiais.
A revolução abolicionista foi o primeiro grande movimento de massas cidadão moderno, promovido pelos trabalhadores escravizados em aliança com libertos, trabalhadores livres, segmentos médios etc. Foi a única revolução social vitoriosa do Brasil. As mazelas da sociedade brasileira atual não se devem aos nossos ancestrais que, eles sim,souberam fazer a sua revolução civil e democrática, ainda que em forma tardia e limitada, nos limites inexoráveis da época. Fazer avançar aquelas conquistas é tarefa de nossa geração.
A Abolição já foi tida como data magna da história do Brasil, festejada com destaque. Nos últimos anos, devido às críticas radicais ao 13 de Maio da imensa maioria dos ativistas do movimento negro organizado, a Abolição tem sido objeto de desqualificação histórica e simbólica.
O caráter transigente e pacífico do brasileiro foi mito fundador oficial de nossa nacionalidade. A abolição da escravatura foi apresentada como prova da pretensa cordialidade brasileira. No exterior, o fim da instituição motivou lutas fratricidas. No Haiti, em 1804, ela ensejou violentíssima guerra social. Em 1861-1865, a guerra de Secessão, pela manutenção ou fim do escravismo, causou mais de quinhentos mil mortos nos EUA.
No Brasil, a transição do trabalho escravizado ao livre teria ocorrido sem violências, devido à nossa alma e instituições transigentes. Nesse cenário, refugiria a figura de Isabel, a Redentora. Apiedada com os negros e despreocupada com a Monarquia, assinou com pena de ouro o diploma que pôs fim ao cativeiro, com o apoio do seu pai, o Imperador.
Com o fim da instituição medonha, começaria a construção de sociedade fraterna. Desde então, não haveria barreiras intransponíveis de classe, entre ricos e pobres, ou de cor, entre brancos e não brancos. Gilberto Freyre consagrou-se propondo que a magnânima do brasileiro nascera da refundação do mundo ocidental nos trópicos, com a instituição escravista patriarcal, que irmanou europeus, americanos e africanos, saltando as barreiras de raça, credoe classe. Os sucessos magnos pátrios, a Independência, em 1822, a Abolição, em 1888, e a República, em 1889,registrariam o caráter cordato da civilização brasileira. A Independência deu-se com pouca luta retornando-se imediatamente à concórdia entre portugueses e brasileiros. O mesmo ocorreria com a proclamação da República.
Nos anos finais da ditadura de 1964, no contexto da mobilização popular,entidades negras combativas denunciaram a demagogia de democracia racial que mascarava a dura realidade do país, trincando a retórica laudatória sobre 1888, sobre a escravidão feliz e sobre o caráter fraterno da sociedade brasileira.Apontavam realidade onde grande parte do povo negro constituía uma das parcelas mais sofridas de população fortemente explorada. Uma sociedade onde a pele escura dificultava a conquista do trabalho e facilitava e o acesso à prisão e, não raro, ao necrotério.
Nos anos 1960, aquelas apologias foram refutadas por estudiosos rigorosos, com destaque para Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, que registraram a violência do escravismo e suas sequelas atuais não apenas para a população com alguma afro-descendência. Porém, esses estudos definiram a Abolição como uma espécie de “negócio entre os brancos”, onde os cativos não tiveram papel significativo e ganhos efetivos. Esses trabalhos construíram a base pretensamente científica da refutação de 1888 pelo movimento negro organizado, nos anos 1980.
Aqueles autores haviam refutado também o papel do trabalhador escravizado como demiurgo do devir da antiga formação social brasileira, negando efetividade às lutas sociais dos cativos, espécie de figurante mudo, incapaz de girar a roda da história. O papel de Prometeu, na transição ao trabalho livre, foi entregue ao escravista progressista, do oeste paulista, e ao imigrante industrialista.
Em 1988, quando das celebrações do I Centenário da Abolição, o movimento negro organizado abraçou acriticamente essas teses, para denunciar a situação então vivida por boa parte da população com alguma afro-descendência. “Nada mudou, vamos mudar”, gritou-se, na Candelária, no Rio de Janeiro. Defendeu-se que a Abolição ocorrera sem indenização dos cativos; que os abolicionistas buscavam mão-de-obra barata. Chegou-se a propor que a Abolição piorou as condições dos escravizados, tese de Gilberto Freyre e dos escravistas e ex-escravistas.
O movimento negro organizado propôs a abominação do 13 de Maio e a celebração do 20 de Novembro, data da morte de [N]Zumbi, em 1695, o último grande chefe político-militar da confederação dos quilombos de Palmares, como Dia Nacional da Consciência Negra. Proposta difundida também pela grande mídia.
Essas leituras bem intencionadas consolidaram as apologias de sociedade sem rupturas sociais. Os ideólogos das classes dominantes haviam se desdobrado para escamotear a Abolição como resultado do esforço dos trabalhadores escravizados aliados aos abolicionistas radicalizados, apresentando-a, como ato magnânimo imperial. Contribuíam para o esquecimento do sentido seminal do mais importante acontecimento do passado brasileiro - a revolução abolicionista de 1887-8.
Celebrar a Abolição não significa reafirmar os mitos da emancipação plena do cativo em 1888 e de Isabel como Redentora. Significava recuperar a importância daquela superação, conquistada por uma frente política pluri-classista dirigida pelo protagonismo exemplar dos trabalhadores escravizados, no primeiro movimento revolucionário nacional de massas e o único, até agora, vitorioso.
Em forma alienada e imperfeita, após 1888, o povo negro sempre reconheceu e celebrou 1888, batizando seus clubes e associações com o nome de Isabel, de 13 de Maio, de Redenção. A Frente Negra Brasileira [1931-1937], primeiro movimento político nacional negro, sob o lema “Deus, Pátria, Raça e Família”, lutava pela restauração da monarquia.
Nos últimos anos, aquela consciência diluiu-se devido ao proselitismo anti-Abolição, com grave perda da memória histórica objetiva dos trabalhadores, com destaque para os afro-descendentes. Memória difusa substituída por uma frágil tradição inventada por cientistas sociais, no geral bem intencionados. Essas propostas foram abraçadas sem reflexão pela esquerda marxista.
Em inícios de 1980, Mariano Pereira dos Santos, ex-cativo centenário, que vivera após 1888, dizia comovido que, após aquela data o povo negro viveu “na glória”. Maria Chatinha, ex-cativa centenária, descreveu arrebatada o momento em que, em sua fazenda, gritaram a libertação. Em 13 de maio de 1888, nas cidades e nos campos, os tambores e os atabaques festejaram frenéticos, ferindo os tímpanos dos negreiros renitentes.
A visão do 13 de Maio, pelo povo negro, como concessão magnânima da princesa redentora, constitui cristalização alienada na memória popular de acontecimento revolucionário para os cativos e a nação, que as classes dominantes sempre se esforçaram para afogar no esquecimento.
Não há sentido em antepor Palmares, em 1695, à Abolição, em 1888. Mesmo historicamente, o sentido do 13 de maio é superior. A luminar epopeia palmarina, restrita ao sul da antiga capitania de Pernambuco, jamais propôs, e historicamente não poderia ter proposto, a destruição da escravidão como um todo.
A confederação dos quilombos de Palmares resistiu por décadas, iluminou nossa história, mas foi derrotada.
Em 1888, a revolução abolicionista foi vitoriosa, mesmo tardia e com limites. Ela pôs fim ao escravismo colonial, o modo de produção dominante por mais de três séculos, unificando o mundo do trabalho, antes dividido em trabalhadores livres e escravizados.
Desconhecer o sentido revolucionário de 1888 é olvidar a contradição essencial que regeu por mais de trezentos anos a história do Brasil, opondo escravizados e escravizadores. Desconhecer o caráter escravista do passado brasileiro significa olvidar as raízes afro-escravistas singulares do Brasil contemporâneo. É esquecer que, em um sentido sociológico, mais do que racial, nossa população descende de escravizados ou escravizadores.
Nos anos 1950, autores como o sociólogo negro e comunista Clóvis Moura e o francês, surrealista e trotskista Benjamin Péret propuseram pioneiramente a resistência dos cativos como luta de classes no Brasil, interpretação esboçada por Astrojildo Pereira, em 1º de maio de 1929, ao definir sumariamente, Palmares como uma “autêntica luta de classes”.
Nos anos 1960 e 1970, historiadores como Stanley Stein, Emília Viotti da Costa, etc., propuseram a escravidão como produção social dominante. Nos anos seguintes, produziram-se estudos sobre a sociedade, a economia e a resistência do trabalhador escravizado. Finalmente, em forma sintética, Ciro Flamarión Cardoso, e, em forma categorial-sistemática, Jacob Gorender apresentaram o escravismo colonial como modo de produção historicamente novo, em salto de qualidade na análise da antiga formação social brasileira.
Em Os últimos anos da escravidão no Brasil, o brasilianista Robert Conrad historiou a Abolição como o resultado do abandono maciço das fazendas, não sempre incruento, pelos cativos, sobretudo da cafeicultura paulista, nos últimos meses do cativeiro, reivindicando a liberdade civil e, comumente, relações contratuais de trabalho. Nesse momento, o núcleo central dos cafeicultores defendia a exploração dos cativos enquanto fosse possível.
Roberto Conrad lembra que, no Natal de 1886, fracassou plano de abandono maciço de fazendas paulistas, planejado por abolicionistas radicalizados. Nas semanas seguintes, os cativos começaram a fugir, cada vez mais numerosos para as cidades ou empregando-se em outras fazendas. O movimento se massificou, sobretudo em São Paulo, então centro do escravismo.
Nesse contexto, o bloco social escravista se dividiu, optando os cafeicultores paulistas proprietários de terras ricas pelo imigrantismo e, os fluminenses, senhores de terras esgotadas, pela indenização. Os recursos públicos foram aplicados no financiamento da imigração. Com a destruição da ordem escravista e a transição ao trabalho livre, materializava-se a única revolução social até hoje conhecida pelo Brasil.
A Abolição deu-se em contexto de duros confrontos, mesmo armados, entre cativos e abolicionistas de um lado e o Estado e escravistas, do outro,tensão sob a qual o abolicionismo radicalizado alcançou a vitória, em 1888. O movimento abolicionista propunha democratização da sociedade, com distribuição de terras entre ex-cativos e brasileiros pobres.
As relações escravistas de produção já emperravam a expansão da área plantada e da produtividade cafeicultura. Com seu fim, centenas de milhares de italianos, atraídos pelos altos salários e o sonho da terra, chegaram ao país, contribuindo para a conformação do exército rural de reserva, formado de miseráveis, com destaque para os ex-cativos.
A Monarquia surgira e se mantiver defendendo a escravidão e o tráfico negreiro. Com seu fim, novas e mais complexas formas de relações de produção exigiam novas e mais complexas formas de dominação.
Após o 13 de maio, sem o apoio dos fazendeiros, liberados agora do trabalho escravizado, a monarquia tentou galvanizar a simpatia da população negra para a defesa do III Reinado. Em junho de 1889, vitorioso nas eleições, o gabinete liberal de Ouro Preto apresentou programa reformista – voto secreto; ampliação do colégio eleitoral; liberdade de culto e ensino; autonomia provincial. A negativa de acolher as reivindicações federalistas das oligarquias provinciais ea proposta de distribuição de terras favoreceram a deposição do Imperador, apoiada pelos conservadores, derrotados nas eleições, representante dos banqueiros, comerciantes e fazendeiros.
O golpe militar de 15 de novembro de 1889 liquidou o fim ao impulso reformista do abolicionismo vitorioso, pondo fim ao centralismo político monárquico, já sem qualquer apoio das classes dominantes. A Constituição republicana sancionaria o novo ordenamento anti-popular, exportador, latifundiário e sobretudo federalista, apoiado na exploração de diversas formas de trabalho livre. Ela foi sobretudo federalista, exigência da oligarquia dos agora grande estados.Com a República, os conservadores vestiram a casaca republicana e retornaram ao poder, pondo fim às veleidades reformistas liberais e abolicionistas.
Quando populações levantaram-se, confusamente, contra uma ordem que lhes era absolutamente madrasta – como em Canudos, Contestado ou na revolta dos Marinheiros Negros – foram acusadas de barbárie e duramente massacradas.
Durante toda a Monarquia, os Braganças sustentaram e foram sustentados pela escravidão. Em 13 de maio, a herdeira imperial apenas sancionou o projeto de lei aprovado no parlamento, assinando o atestado de óbito de instituição liquidada pela sublevação dos cativos.
Foi a ação estrutural das classes escravizadas, durante os três séculos de cativeiro, que construiu as condições para a destruição da instituição. A rejeição permanente do cativo ao trabalho feitorizado impôs limites insuperáveis ao desenvolvimento da produção escravista, determinando altos gastos de coerção e vigilância, abrindo espaços para formas de produção superiores.
Em 1888, a revolução abolicionista destruiu o modo de produção que ordenara a sociedade. Negar essa realidade devido às condições econômicas, passadas ou atuais, de parte da população negra, é compreender a história em viés a-histórico. Os limites da Abolição eram objetivos. No crepúsculo da escravidão, o cativo era categoria social em declínio que lutava pelos direitos cidadãos mínimos, com destaque para a liberdade civil.
É proposta retórica a impugnação do conteúdo revolucionário da Abolição porque os cativos não foram indenizados.A luta pela liberdade civil, a propriedade latifundiária, a pouca difusão de hortas servis dificultavam a distribuição de parcelas de terras, única possibilidade de indenização, que exigia a união revolucionárias de cativos, libertos, caboclos, posseiros, colonos etc.,impossível nas condições históricas da época. Distribuição de terras defendida pelos abolicionistas e impugnada pela república federativa, em 15 de novembro de 1899, proposta por Robert Conrad como verdadeira contra-revolução.
A história avança a partir do esforço dos explorados -do escravismo ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo, etc,- sem obter emancipação total dos produtores diretos - tarefa da revolução proletária, devido ao desenvolvimento das forças produtivas materiais.
A revolução abolicionista foi o primeiro grande movimento de massas cidadão moderno, promovido pelos trabalhadores escravizados em aliança com libertos, trabalhadores livres, segmentos médios etc. Foi a única revolução social vitoriosa do Brasil. As mazelas da sociedade brasileira atual não se devem aos nossos ancestrais que, eles sim,souberam fazer a sua revolução civil e democrática, ainda que em forma tardia e limitada, nos limites inexoráveis da época. Fazer avançar aquelas conquistas é tarefa de nossa geração.
* Mário Maestri, 71, historiador marxista