Bezerra da Silva, o cantor da moral proletária
Levi Sotto e Humberto Rodrigues
Há dez anos falecia Bezerra da Silva, o grande sambista que deu voz aos
trabalhadores dos morros e favelas. Bezerra nasceu em Pernambuco, em 1927. Aos
15 anos de idade, em busca do pai e fugindo da pobreza, foi para o Rio de
Janeiro clandestinamente em um navio, apenas com a roupa do corpo. Encontrou o
pai mas com ele desentendeu-se. Foi trabalhar na construção civil, como pintor
de parede, foi um sem teto que morava nas obras em que trabalhava, na zona
central do Rio, por sete anos. Foi preso muitas vezes pela polícia e acabou
desempregado em 1954. Enamorado de uma “dona” foi morar no morro do
Cantagalo, onde ingressou na bateria do bloco carnavalesco Unidos do Cantagalo.
Uma de suas primeiras parcerias foi com Jackson do Pandeiro, adotando
inicialmente o coco como ritmo musical. Mas foi a partir de 1977, como sambista
de Partido Alto, que Bezerra encontrou-se e deu voz como nenhum outro no Brasil
aos compositores proletários, gente simples, mecânicos, pedreiros,
presidiários, eletricistas, cobradores de ônibus, que através de seus sambas defendiam
“o
povo humilde da colina, que mora lá em cima, vivendo uma vida de cão,
abandonado e covardemente injustiçado” pela mídia que “diz
que lá só mora ladrão”, pela justiça dos ricos e a repressão da polícia
que “dá
um pau no favelado e depois mete na cadeia” enquanto protegem e representam
“a
ira de uma elite famigerada que também tem instinto de traíra”, uma
elite de “safados, ladrão que usa o colarinho branco, rouba o dinheiro do
povo..., mora no asfalto, com mordomia e com toda regalia que aquele dinheiro
pode dar” (“O povo da colina”, de Walmir da Purificação, Tião Miranda e
Roxinho).
“Esse homem é inocente”, “Vida de operário”, “Pobre
aposentado” e tantas outras revelam que o samba de Bezerra era feito
por e para trabalhadores.
"Gravo a realidade brasileira do povo faminto e marginalizado.
Cada um entende de um jeito”, disse certa vez o artista. Como ele
próprio explica, sua ligação com o mundo musical se deu por causa do
"medo da fome". Diz também que a única saída que tinha era
"lutar por dias melhores", pois "tinha dias que trabalhava
e não comia". Não se cansa de afirmar que saiu do ramo da
construção civil porque achava que algum dia iria "virar uma escada, um
tijolo, um saco de cimento".
Conhecido como embaixador dos morros e favelas era a voz da população
trabalhadora e pobre. Compositor com formação em violão clássico, sendo um dos
poucos partideiros – cantor de “Partido Alto”, de roda de samba de
improviso em que os componentes se revezam no canto e geralmente com a presença
de um coro – que lia partituras. Lançou 28 álbuns que venderam 3 milhões de
cópias durante sua vida. Ganhou 11 discos de ouro, 3 de platina e 1 de platina
duplo. Apesar de ter sido um dos artistas mais populares do Brasil, foi
bastante ignorado e pelo "mainstream", quando não,
deturpado. Para desqualificar sua obra e identificá-lo como o tráfico a grande
mídia ressaltava a canção “Malandragem dá um tempo” (de Popular
P. , Adelzonilton , Moacyr Bombeiro). Trata-se de uma irônica defesa do usuário
da maconha e contra a repressão policial que foi regravada pelo conjunto Barão
Vermelho. Com mesma temática gravou “Garrafada do Norte” (de Edson
Show, Wilsinho Saravá e Roxinho), regravada por Marcelo D2. Sempre
quiseram colar em Bezerra o rótulo de cantor do “sambandido”, tentativa
contra a qual ele não fazia concessões: “Dizem que sou malandro, cantor de bandido e até revoltado. Porque
canto a realidade de um povo faminto e marginalizado.” e também se opunha a ser qualificado como pagodeiro: “Quando a música é feita por pobre, analfabeto ou crioulo, eles dizem
que é pagode. Eu não aceito isso!”
A música de Bezerra também nunca atraiu a classe média de esquerda que, embora nutra simpatias pelas canções de protesto e denúncia social, tem aversão
de classe aos códigos morais proletários.
BEZERRA CONTRA
O RACISMO E OS
CANALHOCRATAS
Denunciou o racismo e o preconceito contra os favelados em “Preconceito
de cor”:
“... Somos crioulos do morro / mas ninguém roubou nada ... Isso é preconceito de cor ... A lei só é implacável para nós favelados / E protege o golpista / ele tinha que ser o primeiro da lista ... Eu assumo o compromisso / pago até a fiança da rapaziada / Porque que é que ninguém mete o grampo / no pulso daquele de colarinho branco,..” e em “Negro de verdade”: “Sou negro e peço me trate direito / eu exijo mais respeito pois também sou cidadão ... Não nego sou carente de riquezas / mas tu podes ter certeza não aturo humilhação ... Tudo que tenho na vida fiz por merecer / Eu não compreendo o motivo da sua revolta / se eu sempre fui à luta pra poder sobreviver / Com garra provei para o mundo que posso vencer / e o seu preconceito e recalque só me faz crescer / cansei de ser discriminado só por ser da cor”.
Além da exploração dos patrões e do racismo, Bezerra também denunciou a
a pilantragem dos políticos burgueses, a quem chamava de “canalhocrata” (“Verdadeiro
canalha”, de Jorge Mirim,
Rodrigo, Sérgio Fernandes) de pastores (“Pastor Trambiqueiro”, de
Zaba) e pais de santos (“Paio veio 171”, de Luiz Moreno e Geraldo
Gomes). "Essas músicas que eu canto são de compositores que são servente
de pedreiro, camelô, outro tá desempregado, outro limpa o carro da madame e a
mulher é a cozinheira." (O Pasquim, Volume 17, Parte 1, Edições
810-833).
Bezerra também brigou contra os canalhocratas da indústria cultural.
“Em 1984 ele abandonou o trabalho na Rede Globo para viver de sua produção musical. Depois de gravar grandes sucessos pela RCA, percebe que estava sendo roubado e controlado pela gravadora que não pagava corretamente seus direitos autorais e sonegava o número de cópias vendidas. Nos relatos de Bezerra da Silva contidos no trabalho de Letícia Vianna (1999) encontramos aspectos das práticas trabalhistas exploratórias exercidas pela indústria cultural. Bezerra revolta-se, rompe seu contrato em 1993 sem gravar o último disco previsto e processa a gravadora posteriormente.” (CROCCO, Fábio Luiz Tezini, Bezerra da Silva entre a boêmia e a indústria cultural: condições e contradições do trabalho artístico no final do século XX,)
MALANDRO É MALANDRO
E MANÉ É
MANÉ
Sobre suas prisões, ele mesmo conta:
“A polícia era o seguinte: eles queriam na época uma carteira profissional assinada, o documento era esse; se não tivesse, eles levavam para averiguação. Sempre existia arbitrariedade, já iam botando no xadrez. Tinha até o xadrez dos pobres, para averiguação, o xadrez dos otários. Nunca batiam. Aí deixavam você 24 horas até o boletim chegar com o nada consta, e você ir embora. Eles prendiam mais trabalhador para fazer estatística. Quem prendesse mais, ganhava um prêmio. Eu era freguês de averiguação. Tinha dia que eu entrava em cana duas vezes. Eu ia fazer o quê? Se eu tivesse carteira, eu ia descontar o IAPI e morrer de fome, eu não tinha como sobreviver. [...] Outro dia, preso de novo na 12ª. Aquilo lá era a minha casa, eu já sabia onde era o meu quarto. Doze vezes preso. O comissário me perguntou: ‘Você trabalha em quê?’ Eu dizia que era pintor, não adiantava, a polícia podia me prender toda hora, que eu não ia assinar carteira. Eu não fiz nada, não matei, não roubei.” (SILVA, Bezerra da. Discursos sediciosos entrevista Bezerra da Silva, 1999).
As prisões de Bezerra da Silva e suas experiências como trabalhador
preso pela polícia foram narradas em “Se não fosse o samba”, com
Carlinhos Russo e Zezinho do Valle.
Bezerra recomendava a malandragem a “não dá mole pra Kojak” (Gíria
dos anos 60 que se referia a polícia pois na época os PMs usavam um capacete
tipo "coco" e liso que lembrava a careca do famoso policial Kojak,
personagem de (Telly Savalas da TV americana) e fez o mapeamento da polícia
civil carioca no samba “40 dps”.
Antes de se tornar cristão evangélico ao final da vida, Bezerra foi por
décadas ligado à umbanda e assíduo frequentador do terreiro do Pai Nilo, em
Belford Roxo. Acompanhando grande parte de sua classe, ele também se rendeu a
pressão evangélica que por meio de sua companheira e empresária, Regina de
Oliveira. Morreu antes de completar 78 anos e, por sorte, antes do lançamento
de seu disco gospel.
Bezerra não foi só mais um sambista do morro, cada
letra era um verdadeiro manual de conduta da luta pela sobrevivência dos
moradores das favelas. Sendo os bairros proletários alvo constante do terror
policial e onde convivem trabalhadores honestos e a parte subalterna da
bandidagem envolvida com o tráfico de drogas e armas, dezenas de música de
Bezerra denunciava a “caguetagem” (delação de
companheiros) dos otários, os manés, um instrumento fundamental da guerra da
polícia contra a favela, reivindicando a moral dos malandros. “Bicho
feroz”, “Fofoqueiro é a imagem do cão”, “Ele cagueta com o dedão do pé”,
“Malandro
é malandro e mané é mané”, “Defundo caguete”.
A alcaguetagem de classe sempre foi uma das principais aliadas das
classes dominantes e seus aparatos repressivos. Sem a traição é quase
impossível a infiltração policial, o trabalho de achaque, a divisão da maioria
explorada e oprimida, jogando uns “bichos” contra os outros para
governa-los.
O gelado Lago Cócite, o último círculo do inferno, onde ficariam aprisionados os traidores, segundo Dante |
Hoje, o reacionário instrumento da “delação premiada” é glamorizado
pela mídia patronal e vem sendo largamente usado como parte da judicialização
da luta política da direita, que não consegue ganhar do PT pelos meios eleitorais
tradicionais, e recorre ao achacamento dos sócios do PT, partido que entrou no
jogo burguês e se tornou refém deste jogo, para “ganhar no tapetão”,
agora a operação golpista de turno é a Lava Jato. Na música “Jornal
da Pedra” Bezerra crava sem meias palavras, reivindica uma espécie de ditadura proletária do favelado contra a delação:
“-Disse e me disse, não se revela / É a lei do jornal da pedra da favela / Está escrito assim: -Todos tem que respeitar / Não ví, não sei, não conheço / É somente a resposta que se pode dar / Quem caguetar na favela / Já está ciente que vai dançar... Sim mais é a lei do jornal da pedra da favela / Essa lei têm artigo desonerando o defensor / Cujo o número é 00 / Que doutor nenhum estudou / Ela não dá direito a perdão / Mesmo sendo primário não vai dá sorte / A sociedade apóia o delator / Na favela ele é condenado a morte”. E conclui “Ai rapaziada, depois de um papo desse, vacila quem quiser / É a maior deixa malandragem."
Para ouvir “Jornal da Pedra”
Outro de seus ensinamentos está em “Se eu não mato eu morro”:
“Se eu não mato, eu morro / E se corro a moral não ficava de pé / Preferi dar um tiro na cara do cara /Que me achou com cara de Zé Mané. Gente, eu não sou valente / Sou um homem decente, sou trabalhador / Mas se a barra está pesada / Eu topo a parada não sou corredor. Se joguei brasa na cara do cara / Foi porque o cara não estava sozinho / Estava com mais de cinquenta / Assim ninguém aguenta, eu saí de rapidinho”
Em sua definição de malandro, o “Malandro rife” (de Ary Do Cavaco e Otacílio
Da Mangueira) Bezerra canta:
“ Quando o bom malandro é rife / Comanda bonito a sua transação / Não faz covardia com os trabalhadores / E àqueles mais pobres ele dá leite e pão / Quando pinta um safado no seu morro / Assaltando operário botando pra frente / Ele mesmo arrepia o tremendo canalha / E depois enterra como indigente. ”
O MONOPÓLIO DO TRÁFICO,
A
OCUPAÇÃO MILITAR DAS FAVELAS
E OS EFÊMEROS MANÉS
Nos dias atuais, os elementos do lumpemproletariado da favela,
vinculados sobretudo aos cartéis da droga monopolizados internacionalmente
aprofundaram sua integração com o aparato repressivo estatal, delatando e
ampliando a lucratividade do tráfico para o aparato, processo que conduziu a
uma busca pelo maior controle das favelas e eliminação da concorrência. Por
isso, o povo da colina tem seus bairros permanente subjugado pela
ocupação militar de UPPs, tropas de elite, mílicias policiais de extermínio.
A ofensiva bárbara do capitalismo pressiona por uma completa
degeneração dos bairros proletários, desgraça ainda mais a vida nas favelas, estrangula
o futuro das novas gerações e impõe a conversão da juventude em funcionários ultra-precarizados
da grande empresa multinacional do tráfico de drogas pesadas expandida
enormemente nos últimos anos. Os trabalhadores honestos são severamente castigados
apenas por serem proletários e os malandros a bandidagem organizada tradicional
são esmagados para dar lugar a uma legião de manés cuja vida efêmera é privada
dos mínimos princípios para a sobrevivência social. O bairro onde mora o peão
foi transformado gradualmente em um campo de concentração de regime
semi-aberto. A mão de obra é ultra desvalorizada, a própria condição de
empregado é “oferecida” pelo patrão como um favor que ele “concede”
ao peão, parte do pagamento, complemento do salário miserável.
Mas, a história não termina aí ela continua na própria “cidade
maravilhosa” com as lutas de ocupação da Frente Internacionalista dos
Sem Teto e de um dos setores mais humilhados e aviltados do proletariado da
colina, os trabalhadores da limpeza pública, os garis do Rio de Janeiro, se
levantaram altivos, mostraram o caminho, realizaram greves como a de 2014 contra
o Estado racista e patronal, os canalhocratas da Conlurb e da
prefeitura do PMDB, passaram por cima dos pelegos dedos-duros sindicais e
arrancaram 37% de aumento salarial dando exemplo de como seguir a luta para
todos os escravizados “dessa grande favela chamada Brasil”
(“Pobre
aposentado”, de Adezonilton e Gil de Carvalho).