Sávio Bastos - GPOSSHE (Original publicado aqui)
irracionalismo, como designação de uma tendência ou escola filosófica, é fundamentalmente a negação da existência de leis objetivas que regem os processos da natureza e as relações sociais dos homens, ou a negação da possibilidade de conhecê-las, sendo as leis objetivas aquelas que operam independentemente da vontade humana. Na linguagem de muitos dos filósofos, é a negação da possibilidade de conhecimento da essência da coisa-em-si, da lei mais íntima que rege aquilo que tem uma existência independente do homem e de sua apreensão pelo intelecto humano; o irracionalismo, assim, nega a possibilidade de apreensão e conhecimento das leis que regem os fenômenos, sejam os da natureza ou os da sociedade.
O filósofo marxista Georg Lukács, em sua monumental obra “A destruição da razão”, indica a característica fundamental do irracionalismo filosófico[1]. Segundo ele, Hegel diferencia o mero entendimento do pensamento dialético, sendo o primeiro fruto do pensamento puramente intelectivo operado pela lógica formal. O segundo, ao contrário, constituiria a mais alta forma do conhecimento e, portanto, da racionalidade humana. Lukács observa que Hegel já havia encontrado em expressões do pensamento puramente intelectivo, como a matemática e a geometria, alguns limites e contradições que se constituíam como pressupostos e fundamentos do movimento dialético ascendente em direção à razão: “Hegel afirma a propósito da geometria que, ‘contudo, no seu curso, choca-se finalmente com incomensurabilidades e irracionalidades, onde, se quiser ir adiante no determinar, é impelida para além do princípio do entendimento”, ou seja, para além do conhecimento puramente intelectivo (aquele, repita-se, adquirido pela lógica exclusivamente formal) e, por conseguinte, em direção ao pensamento dialético. Para Lukács, se o homem procura solucionar racionalmente tais limites e contradições do pensamento puramente intelectivo, eles se tornam o ponto de partida para se alcançar a mais alta forma do conhecimento que é justamente o pensamento dialético. O irracionalismo, pelo contrário, considera absolutos e não transponíveis pela razão esses limites e contradições, o que leva tal escola filosófica a utilizar, por exemplo, a intuição (e não a razão) para dar uma resposta suprarracional a tais problemas. Deste modo, para Hegel e Lukács, o entendimento adquirido através da lógica formal é um passo necessário e inafastável para se alcançar a racionalidade ou, o que é o mesmo, o entendimento é “um ponto de partida do desenvolvimento do pensamento para a dialética”[2].
Lukács afirma também que Hegel definiu umas das questões centrais do método dialético, ao caracterizar “o reino das leis” como “a imagem quieta do mundo existente ou fenomênico”[3]. O fenômeno, para Hegel, é o mundo existente, a realidade como uma totalidade, como tudo que existe. E Lênin disse, acerca deste pensamento hegeliano, que “essa é uma excelente definição materialista, notavelmente apropriada (o uso do termo ‘quieta’). A lei toma o que está quieto – e por isso a lei, toda lei, é estreita, incompleta, aproximativa”. Por isso o fenômeno, a realidade existente, é sempre algo mais que a lei. O fenômeno contém a lei; a lei nunca contém todo o fenômeno em sua totalidade. Segundo Hegel, o algo mais que o fenômeno contém em relação à lei é o elemento da forma (a realidade sempre existe através de uma forma) que faz a realidade mover-se a si mesma, transformar-se.[4] É esta característica do método dialético de Hegel que o torna progressista: o conhecimento humano está sempre em progresso, se aproxima cada vez mais da compreensão da essência objetiva do objeto estudado, embora nunca o apreenda em sua integralidade, inclusive porque o próprio objeto está em constante movimento, mudando com o decorrer do tempo.
Assim, Lukács observa que “como a realidade objetiva em princípio é mais rica, mais variada e mais complexa do que jamais podem ser os conceitos mais bem desenvolvidos do nosso pensamento, são inevitáveis os confrontos entre o pensamento e o ser”, que podem ser utilizados pelo irracionalismo filosófico como uma demonstração da impossibilidade de compreensão da realidade objetiva, ao passo que para o pensamento dialético tais dificuldades sucessivamente enfrentadas pela humanidade durante o seu percurso de apreensão do real são sempre um novo ponto de partida para o avanço de seu conhecimento acerca do mundo. Assim, os problemas ainda não resolvidos pelo conhecimento humano são, para o irracionalismo, a prova da impossibilidade do próprio conhecimento, de que a razão humana é incapaz de apreender a realidade objetiva. Deste modo, “o irracionalismo interpõe-se aqui nessa – necessária, insuperável, mas sempre relativa – discrepância entre a representação intelectual e o original objetivo”[5], afirmando a impossibilidade do conhecimento humano a partir daquilo que para a dialética é o próprio motor da ampliação deste mesmo conhecimento.
Notas
[1]In Lukács, A destruição da razão, 1ª edição do Instituto Lukács (2020), p. 86.
[2]In Lukács, A destruição da razão, 1ª edição do Instituto Lukács (2020), p. 86.
[3]In Lukács, A destruição da razão, 1ª edição do Instituto Lukács (2020), p. 87.
[4]In Lukács, A destruição da razão, 1ª edição do Instituto Lukács (2020), p. 87.
[5]In Lukacz, A destruição da razão, 1ª edição do Instituto Lukacz (2020), p. 88.