Mário Maestri, Comentário no Duplo Expresso, 18/07/2019
Com as eleições de 2018, o Brasil superou o golpe de 2016 ou
ingressou em uma espécie de ditadura “constitucional”? Esta não é pergunta
retórica, para impulsionar simplesmente reflexões diletantes sobre a situação
do país. Uma resposta correta é necessária para a definição das saídas
possíveis da terrível realidade que vivemos. Para tal, devemos, inicialmente,
precisar os conceitos, ou seja, o que é um “golpe” e o que é uma “ditadura” -
ou “ordem autoritária”.
Um “golpe político” é uma fratura brusca em um processo
institucional, em geral por forças antipopulares, portanto sem o direito de
intervenção no ordenamento social. O
“golpe” pode ser “civil”, em geral com o apoio das forças militares. Mais
comumente, é militar e expressa facções do capital nacional ou internacional.
Em um curto espaço de tempo, o “golpe” - daí o nome - procura interromper um
processo institucional, retornando a seguir à normalidade anterior. Ou, mais
comumente, pretende criar um novo ordenamento no país. Habitualmente, trata-se
de ações antipopulares, em favor dos donos da riqueza e do poder.
O Paraguai, em 2012, é exemplo de “golpe parlamentar”
pontual que, com a bênção das forças armadas e inspirado e guiado pelo
imperialismo, afastou o ex-bispo Fernando Lugo, com o retorno, a seguir, às
instituições e mecanismos conservadores tradicionais. Quando do golpe, Lugo perdera boa parte do
apoio popular que o elegera, por contemporização com as classes dominantes. São
inumeráveis os golpes dados para instituir uma nova ordem constitucional
conservadora ou ditatorial, contra a população e os trabalhadores, através da
supressão dos direito democrático-burgueses. A nova ordem autoritária ou
ditatorial pode ou não permitir algumas instituições formalmente democráticas.
É habitual que a ordem ditatorial seja exercida diretamente
pelas forças armadas, como no caso do Paraguai, em 1954; do Brasil, em 1964; da
Argentina, em 1966; do Chile, em 1973. Os militares também gostam de uma
“boquinha”, e como gostam! Os ditadores-presidentes podem ser rotativos, como
no Brasil, em 1964-1985, ou permanentes, como Stroessner, de 1954 a 1989,
“reeleito” sucessivas vezes, ou Pinochet, de 1973-1990, que se manteve no poder
sem firulas pseudodemocráticas.
A característica
central de ordem ditatorial é a manutenção da população à margem da gestão
política da sociedade, mesmo relativa, obedecendo às necessidades e exigências
das classes proprietárias nacionais ou mundiais. As formas institucionais para
impor a separação da população da participação no jogo político e reprimir sua
organização são diversas e variam segundo a época e o momento. Durante o século
19 e começos do século 20, governos oligárquicos ou capitalistas foram
mantidos, sem a necessidade da intervenção militar, através sobretudo do voto
censitário, no qual apenas os ricos votavam nos ainda mais ricos. Foi o caso
das grandes nações europeias, antes da imposição do voto universal e o direito
de organização pelos trabalhadores, e mesmo do Brasil, no Segundo Reinado
(1840-1889) e na República Velha (1889-1930).
Voltando ao Brasil. Fora exceções patológicas como o PSTU
[Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, trotskista], o MÊS [Movimento
Esquerda Socialista, tendência trotskista no Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL)] de Luciana Genro, a CST do Babá [Corrente Socialista dos
Trabalhadores, tendência
trotskista-morenista no PSOL] todos na esquerda concordam, sem entrar na
discussão das bondades ou maldades do governo Dilma Rousseff, que ele sofreu,
em 2016, um golpe, quando perdera já o apoio popular, devido à forte guinada
direitista. Um golpe que, mutatis mutandis, seguiu de perto o sofrido por Lugo.
Ou seja, um golpe realizado por meio de um impeachment em tudo forçado que pôs
os vices na presidência, como determinavam as constituições, aqui e lá.
Encenação de respeito constitucional para a qual, temos que reconhecer, o PT e
sobretudo Dilma Rousseff contribuíram, aceitando, até o fim, participar de uma
disputa parlamentar e judiciária farsesca, desde o início já decidida, em vez
de chutarem a “pau da barraca”.
Indiscutivelmente um golpe
Comportamento repetido por Lula da Silva que, apesar de
reconhecido como prisioneiro político por todos os homens e mulheres honestos,
do Brasil e do mundo, entregou-se, em vez de permanecer entre os trabalhadores,
caracterizando a ilegalidade total de seu aprisionamento. E, mais ainda, seguiu
o caminho para a prisão dizendo confiar na Justiça. E, agora, preso há mais de
um ano, segue exigindo que a Justiça reconheça sua inocência, apesar de ela ter
sido a responsável por enviá-lo para a prisão, e lá mantê-lo, por delitos
fantasiosos, sem quaisquer traços de prova.
Se é certo e líquido
que, em 2016, houve um golpe de Estado, falta definir qual seu objetivo. Ou
seja. O impeachment procurou afastar Dilma, para retornar, a seguir à
normalidade institucional, como no Paraguai, após o interregno de Michel Temer?
Ou seu objetivo foi criar uma nova ordem que impeça de todo e permanentemente a
população intervir na gestão política de seus destinos, mesmo no contexto da ordem capitalista, pondo
assim fim, de fato, à própria democracia burguesa? Isto é. O grande objetivo do
golpe não teria sido derrubar Dilma Rousseff, mas a criação de ordem autoritário institucionalizada que
permita a imposição permanente de ditadura plena do grande capital e do
imperialismo sobre os trabalhadores e o país.
Em forma geral, essa questão já foi respondida pela direção
da oposição de esquerda, sobretudo parlamentar.
E a resposta que esta última deu a ela, totalmente alienada, teve
resultados indiscutivelmente desastrosos para a população. PT, PCdoB, PSOL e
puxadinhos propuseram -ou se comportaram- como se a vida política, após 2016,
tivesse continuado a funcionar como anteriormente, sem modificações essenciais,
fora o vice ocupando ilegalmente a presidência e alguns outros pequenos
problemas. Assim sendo, propuseram as
eleições presidenciais como o melhor combate ao “governo golpista” de Michel
Temer, originado no impeachment, com limite de uso em outubro de 2018. Após as
eleições, tudo voltaria à normalidade, ou quase, sugeriam e propunham.
Em verdade, alguns
dos maiores dirigentes da oposição parlamentar, como Haddad, vacilaram até
mesmo em definir o impeachment como golpe. E, logo após a derrota no pleito
presidencial de 2018, que jamais denunciaram como farsa, Haddad, Guilherme
Boulos [PSOL] e associados subscreveram a legalidade de eleições em tudo
fraudadas pela grande mídia, pelo empresariado, pela justiça eleitoral, pelo
STF, pela polícia federal e, com destaque, pelo alto comando do exército. A
seguir, as variadas direções da oposição bem-comportada propuseram oposição e
resistência às políticas do governo Bolsonaro, e não ao governo, que juram
legítimo. E, sobretudo, apontaram para sua derrota através da luta parlamentar
e das eleições em 2020 e 2022. Tudo como se vivêssemos em normalidade
institucional. Política nas palavras e no silêncio subscrita por Lula da Silva,
desde a prisão.
Fantasia política e terra arrasada
Por enquanto que a
direção política e sindical hegemônica da oposição encanta com sua fábula
política a população desesperada e desorganizada, o movimento golpista realiza,
a trote-galope, literal arrasamento social e econômico do país, de sentido
irreversível, ao qual a direção narcótica do movimento popular propõe,
igualmente, opor-se, essencialmente no parlamento, onde não alcança qualquer
resultado tangível. Quando propõe. A
direção de longe majoritária da oposição desvia a população e os trabalhadores
da luta contra a instalação de ordem autoritária, ao avalizar a farsa
institucional que o golpismo impulsiona. Faz de conta que tudo segue como
dantes, neste cada vez mais triste quartel de Abrantes. Repete o triste papel
do MDB, de oposição consentida pela ditadura, com a função de desviar a
população da luta. Defende seus interesses particulares e os das classes que
representa, desinteressada da sorte da população e dos trabalhadores.
Mas agora, a oposição faz-de-conta acaba de sofrer derrota
monumental, que esperava e de certo modo preparou, que desnuda o sem sentido de
sua retórica e propostas, que, entretanto, não serão por ela abandonadas. Os
379 a 131 votos no primeiro turno da liquidação da Previdência pública e
privada mostram que o “golpismo”, através do domínio total da Câmara, tem
condições para a total reformatação das instituições nacionais, construindo
nova ordem que permita manter, ad aeternum,
a população longe de qualquer determinação de seus destinos, sob o tacão
despótico do grande capital e do imperialismo.
Portanto, junto ao arrasamento das condições de existência da população
e da nação em curso, a Câmara e o Senado seguirão avançado, dentro de pretensa
legalidade, a construção de uma verdadeira ditadura institucional antipopular,
antitrabalhadora e antinacional.
Uma ditadura
institucional que já é discutida nos seus detalhes e será consolidada através
de reformas tributária, política, orçamentaria, judicial e por aí vai, que
deixarão o mundo do trabalho e o país nas mãos do grande capital globalizado e
do imperialismo, através de seus operadores locais - a grande mídia; a Justiça,
a Polícia, o Congresso, as Forças Armadas, todos já sob controle do
imperialismo e corrompidos até a medula dos ossos. Realidade consolidada pela
destruição de qualquer espaço de legalidade real e pela naturalização da lei do
cão do grande capital na gestão da sociedade.
É imperativo superar as políticas e propostas da direção
colaboracionista, antes que se consolide a metamorfose patológica da sociedade
nacional e de suas instituições. Urge levar a luta, pelo fim do segundo governo
golpista e da ordem atual em constituição, às ruas, às fábricas, às escolas, ao
campo, aos quartéis. Antes que o Brasil se transforme em uma neocolônia da
ordem capitalista globalizada e sua população em semi-servos assalariados, sob
o tacão das forças policiais e militares, comandadas por generais em tudo
estrangeiros ao país. Antes que o inferno que já vivemos congele toda a nação.