Humberto Rodrigues
Uma das características predominantes da ideologia dominante
no país é o tipo de racismo brasileiro. Este fenômeno tem origem no sequestro
de negros de tribos africanas por empresas negro-traficantes portuguesas (com
ou sem a colaboração de tribos rivais) para a recriação, em pleno capitalismo,
do trabalho escravo (elemento decadente no ocidente desde a crise do império romano).
A metrópole colonizadora do Brasil recriou a escravidão e instaurou o racismo
negro. Mas, diferente de outros países, como os EUA, onde também a acumulação
capitalista primitiva se apoiou na escravidão negra, no Brasil, acredita-se que
o país haveria escapado do preconceito racial, por não parecer tão explicito e
contrastante entre a cor da pele do opressor e a cor da pele do oprimido como
nos EUA.
Para os defensores do mito da democracia racial, a miscigenação
brasileira teria então atenuado o racismo nacional. A miscigenação, principalmente
entre brancos, negros e indígenas, combinada com o embranquecimento fabricado
da população, via atração de imigrantes pobres dos continentes europeu e
asiático, seria uma “prova” de um Brasil acolhedor, onde a escravidão e a
desqualificação do trabalho negro seriam resquícios do século XIX saneáveis por
medidas administrativas, reformas pontuais no capitalismo nacional, como por
exemplo, as ações afirmativas, cotas, etc.
O mito da “democracia racial” no Brasil, identificado com
Gilberto Freyre e sua obra “Casa Grande e Senzala” (1933) foi amplamente
absorvido como verdade pela pequena burguesia e da academia.
Os estudos realizados por Octavio Ianni, Caio Pardo Júnior e
Florestan Fernandes já comprovaram que o racismo se combina, embora com
elementos independentes, com o preconceito social, de classe. Mas, a tese que
melhor explica as origens do racismo camuflado brasileiro é a de Marvin Harris (antropólogo
dos Estados Unidos, principal teórico do ‘materialismo cultural’) de que “dada a falta crônica de mão de obra em Portugal... os donos
de escravos não tiveram outra solução senão a criação de uma classe de miscigenados livres”, ou seja, foram forçados a criar um grupo intermediário livre de miscigenados que se colocasse entre eles e os escravos, para realizar funções
econômicas e militares essenciais (como a supervisão dos escravos e a
perseguição de escravos fugidos) que não poderiam ser realizadas pelos escravos
e para as quais não havia brancos suficientes. No sul dos Estados Unidos essas
funções foram exercidas pelos camponeses brancos. Portanto, a miscigenação foi
uma necessidade de implantação do sistema de plantation pelos portugueses.
A criação desta camada intermediária de miscigenados, os
capitães do mato, essencial para o domínio dos explorados pela “Casa Grande”
branca, ou seja, para as classes dominantes de ontem e de hoje foi o que
condicionou o racismo brasileiro, notável desde as novelas nacionais até o
“perfil do suspeito” pelas polícias militares, passando pelo apartheid social
que veio a tona no episódio dos rolezinhos dos jovens negros pobres
segregados pelos shoppings centers.
A existência de uma camada esquálida de negros ou “miscigenados”
capitães do mato contemporâneos continua sendo um fenômeno de continuidade
funcional a burguesia branca. Estão aí como exemplos Pelé, que justificou a
ditadura militar, Joaquim Barbosa, testa de ferro da reação de direita
burguesa, através da judicialização da luta política na direção do Supremo
Tribunal Federal, e dos próprios policiais não brancos que assassinam e
descriminam jovens negros.
Todo ano, 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos. O racismo corresponde a uma necessidade de exploração e controle social das classes dominantes, sendo não apenas um componente essencial do capitalismo brasileiro, mas um ingrediente predominante da exploração da mais valia no país. É a manutenção dele, velado ou aberto que garante que o valor da mão-de-obra do trabalhador negro seja 40% mais barata do que a de um trabalhador não negro. As mulheres negras, duplamente oprimidas pelo racismo e pelo machismo custam 47% do gasto da mão de obra de um trabalhador branco (Dieese). Isso não pode ser eliminado por simples medidas cosméticas, de integração ao capitalismo ou reparações. A defesa da política de cotas, por exemplo, são, como todas as reformas, uma tática, mas não podem ser encaradas jamais como bandeiras estratégicas de combate ao racismo, que, principalmente no Brasil, só poderá ser eliminado com o a eliminação do capitalismo. Como nos ensinou Malcolm X, “Não existe capitalismo sem racismo”, portanto, a luta contra o racismo é a luta pelo fim do capitalismo.
O capitão do mato é opressor e semi-oprimido. Esta
contradição não deve criar a ilusão de poder usá-la a nosso favor, de que por
exemplo um policial negro seria mais passível de ser ganho para não exercer sua
função contra uma greve, manifestação ou durante um despejo.
A realidade mostra diariamente que os negros que exercem
essa função não levam muito em conta a própria cor ou origem de classe, pelo
contrário, tendem a ser mais opressores para romper com o próprio passado e não
serem vistos com suspeitos por seus amos. O opressor, capitão do mato tenta
resolver desesperadamente esta contradição de sua realidade (de opressor /
semi-oprimido). O mito da democracia racial foi enriquecido pelo neoliberalismo
com o da meritocracia, do trabalho e esforço recompensados, na crença de que
tudo é uma questão de oportunidade.
Às vezes, o racista pode ter uma cor, um fenótipo, mais
escuro que a sua vítima. Isto não muda nada, pois, como dissemos, a essência do
racismo é o de ser uma ideologia de opressão e não uma diferença entre raças
dentro da raça humana.
Todo racismo é uma ideologia de dominação de classe. Isso
não quer dizer que quem exerce o racismo faça parte de uma classe distinta de
quem sofre o racismo. Comumente não é assim. Mas, quem exerce o racismo busca aproveitar-se
da ideologia dominante para dominar. As ideias dominantes no conjunto da
sociedade em uma época são as ideias da classe dominante. Como ideologia, o
racismo é uma ideia falsa da realidade, uma justificativa desenvolvida para, a
partir da opressão, acentuar a exploração do trabalho de outro ser humano.
Portanto, o racismo, assim como a xenofobia, não se baseia na pigmentação da
pele, mas, sobretudo na subjugação de alguém para um outro, ou a serviço de um
terceiro.