Gustavo Cabral
A internet, assim como o seu subproduto, as redes sociais, representaram um marco nas telecomunicações por sua capacidade de conectar pessoas desde os mais longínquos rincões aos centros mais desenvolvidos do mundo de maneira instantânea. Inobstante, esta verdadeira revolução das comunicações também trouxe suas próprias mazelas, a qual se destaca o poder de manipulação em massa através de disseminação de falsas informações.
Dentro desse contexto, pululam nas redes sociais informações acerca do auxílio-reclusão que destoam em muito da realidade, chamando-o de bolsa-presidiário. O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário pago pelo INSS às famílias do segurados do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) que se encontram reclusos. Por esta razão, faremos algumas considerações acerca deste benefício como contraponto à campanha de desinformação que contamina as redes sociais e representa, em última instância, um verdadeiro avanço ideológico de direita sobre os direitos da classe trabalhadora.
Existe um caráter claramente ideológico, de direita nestas fakes news. A principal razão desta investida midiática contra esta prestação previdenciária se dá pelo simples motivo de ser um benefício destinado unicamente às pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, ou seja, os dependentes dos segurado de baixa renda. Agregue-se a isso ser o fato-gerador do benefício a prisão do segurado e pronto, temos a receita perfeita para alimentar um bom, velho e reacionário ódio de classe.
Nesta esteira, encontramos na internet informações através do mais variados formatos, (memes, notícias, publicações em redes sociais, etc) acerca de um benefício previdenciário destinado aos presidiários, cujo valor supera em muito o valor do salário mínimo, sendo isto parte de uma política esquerdista visando a proteger “vagabundos”, enquanto o trabalhador é desamparado.
Outro elemento que ratifica o afirmado acima é o fato de que não é incomum que às falsas informações sobre o auxílio-reclusão o relacionem a uma política do Partido dos Trabalhadores (PT) destinada exclusivamente à população carcerária, informação esta de uma imbecilidade sem tamanho, dado que o mesmo teve suas origens de forma concomitante com a origem da própria Previdência Social pública no Brasil, ainda no início do século XX.
Origens e evolução do auxílio-reclusão
na legislação brasileira
O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário devido aos dependentes do segurado do RGPS que se encontra recluso, cumprindo pena em regime fechado ou semiaberto ou, ainda, que esteja preso provisoriamente. Significa dizer que é impossível ser vagabundo e instituidor de auxílio-reclusão, visto que para ser instituidor deste benefício é previamente a prisão necessário ser segurado da Previdência Social.
Trata-se de uma experiência única da legislação brasileira, pois não possui correspondente ou benefício assemelhado no sistema previdenciário de outros países. A primeira previsão legal se deu no ano de 1933 quando passou a ser previsto no extinto Instituto de Previdência dos Marítimos-IAPM e, posteriormente, também no igualmente extinto, Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários – IAPB.
Além disso, a partir do Decreto Nº 54/1934 o benefício passou a ser pago apenas aos dependentes, não se exigindo que o segurado tenha cumprido os requisitos para a aposentadoria, como antes era exigido. Mas adiante passou a ser previsto na Lei Orgânica da Previdência Social de 1960 (Lei 3807/1960), com critérios bem definidos para sua concessão, prevendo para sua fruição a necessidade de ter realizado pelo menos 12 contribuições para o sistema previdenciário, a título de carência contributiva.
Porém, a primeira Constituição que previu expressamente a figura do auxílio-reclusão foi a Constituição de 1988, tendo sido recepcionado pela Lei Maior do país no artigo 201, inciso I.
Coube à Emenda Constitucional nº 20 de 1998, sob a égide do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) estabelecer para o auxílio-reclusão uma regra de seletividade. Tal regra consiste em limitar o acesso ao benefício apenas aos dependentes dos segurado considerados de baixa renda. Desta forma, o benefício que era garantido a todos os dependentes dos segurados da Previdência Social, passou a ser pago apenas aos dependentes do segurado de baixa renda desde 15 de dezembro de 1998, data de vigência da Emenda. Este foi o primeiro, porém, mais decisivo ataque a este direito da classe trabalhadora.
Tal alteração teve um impacto decisivo no volume de auxílios-reclusão concedidos após a partir de 1998, pois deixou sem cobertura para a esta espécie de prestação previdenciária uma parcela significativa de segurados que se encontram na faixa de renda situada acima do teto prescrito na Lei, tornado sem sentido os argumentos dos que tentam detratar o auxílio-reclusão através do impacto financeiro no sistema previdenciário.
Impacto financeiro da concessão do auxílio-reclusão
no Regime Geral de Previdência Social
Apenas a título exemplificativo, o último Anuário Estatístico do INSS (2015, p. 93), informa que o número de auxílios-reclusão concedidos sofreu uma queda acentuada no período de 2013 até 2015. A explicação para este fato é que a Portaria Ministerial que atualiza o teto de enquadramento na condição de baixa renda tem aproximado cada vez mais este teto do valor do salário mínimo, limitando o acesso ao benefício apenas aos segurados que ganham um pouco acima do piso nacional.
Informa o referido anuário que em 2013 foram concedidos 25.211 (vinte cinco mil, duzentos e onze), decaindo este número para 24.074 (vinte quatro mil e setenta e quatro) no ano de 2014 e seguidamente para 19.851 (dezenove mil, oitocentos e cinquenta e um) no ano de 2015. Ou seja, foram concedidos 5.360 (cinco mil, trezentos e sessenta) auxílios-reclusão a menos, apenas no intervalo de dois anos. Isso representa uma redução de nada menos que 22,26% da quantidade dessa espécie de benefícios concedidos pelo INSS.
A direita dá a entender que o sujeito mata e assalta e aí ganha como prêmio o auxílio reclusão, ao qual chamam “bolsa presidiário”. Disseminam entre os trabalhadores a crença e o despeito de que enquanto um sujeito está cada vez mais lascado dando duro para por comida na mesa, o outro é beneficiado com a delinquência e a proteção de leis humanitárias. A direita faz essa disputa ideológica para ganhar setores mais amplos da classe trabalhadora e da classe média, para eliminar os direitos sociais da população, as mais elementares proteções aos direitos humanos, trabalhistas e, no caso, previdenciários. Afinal, eliminar o auxílio reclusão é parte da perseguição aos direitos, considerados “privilégios”. O direito do preso e de todos os segurados, que contribuem para a previdência, são considerados privilégios. Obviamente que a direita apoia-se na ignorância e no preconceito de classe contra o proletariado, para confundi-lo e dividi-lo. As ideias dominantes precisam dominar a classe dos dominados.
Em 2017 o Brasil possuía 726 mil presos, segundo o Ministério da “Justiça”. Nos últimos 11 anos o país dobou em quantidade de presos, a maioria pretos e pobres, marginalizados da classe trabalhadora. E desse total 40% são provisórios, ou seja, não foram condenados, aguardam julgamento. O Brasil possui a terceira maior quantidade de presos no mundo, sendo o quinto país mais populoso e o que possui maior taxa de lotação dos presídios em todo planeta. Portanto, não é novidade para ninguém que com superlotação, tortura, estupros, comida podre, assassinatos, massacres, ... os presídios brasileiros são o que há de mais próximo da descrição do inferno sobre a Terra. Enquanto o número de auxiliados segurados é reduzido, enquanto o valor pago por auxílio é cada vez mais miserável, dispara a quantidade de presos no país. Porque a direita estrebucha contra menos de 19 mil beneficiários em uma população de 726 mil presidiários? Como entender todo esse escândalo da direita contra um direito do preso segurado que mal atinge 7% de toda a população carcerária? Porque não se trata sequer de economia financeira, se trata de uma ofensiva burguesa não apenas contra os presidiários e seus familiares, mas contra toda a classe trabalhadora. Ao condenar os presidiários da classe trabalhadora ao inferno e ao fazer uma punição coletiva aos seus familiares, condenando filhas, filhos e mães a mais extrema miséria, a classe dominante está enviando um recado a toda a classe dominada: submetam-se a escravidão e não resistam de forma alguma. O ódio contra o auxílio reclusão faz parte de um terrorismo psicológico da burguesia e seus lambe-botas contra a classe trabalhadora de conjunto. O trabalhador que repercute de alguma forma essa propaganda de guerra de seus inimigos, o pobre de direita que como um papagaio vocifera contra outro pobre preso, é um idiota útil ao seu inimigo e contra si mesmo.
Outra informação importante diz respeito à comparação da quantidade de benefícios concedidos no grupo de espécie auxílios. Em 2015 foram concedidos um total de 1.858.175 (um milhão, oitocentos e cinquenta e oito mil, cento e setenta e cinco) auxílios, entre urbanos e rurais. Deste total, os auxílios-doença correspondem a 1.828.337 (um milhão, oitocentos e vinte e oito mil, trezentos e trinta e sete), seguido do auxílio-reclusão com 19.851 (dezenove mil oitocentos e cinquenta e um) benefícios concedidos. Por último temos os auxílios-acidente, com apenas 9.987 (nove mil novecentos e oitenta e sete) concessões.
Percebe-se, portanto, que comparado ao número de auxílios-doença concedidos no mesmo período, a quantidade de auxílios-reclusão mostra-se bastante inexpressivo, representando apenas 1,06% do número de benefícios do grupo de espécie auxílios.
Se considerarmos que, segundo o mesmo anuário, o montante de benefícios do RGPS concedidos no ano 2015, 4.065.490 (quatro milhões, sessenta e cinco mil, quatrocentos e noventa), e compararmos com o número total de auxílios-reclusão concedido no mesmo período, 19.851 (dezenove mil oitocentos e cinquenta e um), concluiremos que este representa apenas 0,49% do total de benefícios concedidos pelo Regime Geral em 2015.
Levando em conta, ainda, que o valor médio dos benefícios concedidos pelo RGPS em dezembro de 2015 foi de R$ 1.201,57 (um mil, duzentos e um reais e cinquenta e sete centavos), enquanto o valor médio do auxílio-reclusão no mesmo mês foi de R$ 972,06 (novecentos e setenta e dois reais e seis centavos), restará demonstrado que os valores referentes ao pagamento do auxílio-reclusão representam um impacto financeiro no sistema previdenciário que beira a insignificância. Destarte, conclui-se que o argumento baseado no impacto financeiro causado no RGPS pelo auxílio-reclusão é insustentável.
Vê-se, portanto, que as informações que circulam na internet, cujo objetivo é desqualificar o auxílio-reclusão, não se sustentam quando confrontados com a realidade. Por outro lado, refletem o caráter de classe daqueles que às disseminam, pois buscam incutir na sociedade a ideia de que qualquer benefício destinado aos presos ou suas famílias são desperdícios de dinheiro público. Esta concepção caminha na mesma senda dos que advogam que o preso ou sua família é que devem custear as despesas de sua “estadia” na prisão.
E inegável o caráter fascista dessas ideias, pois se elidem de promover qualquer discussão acerca dos reais problemas que levam ao encarceramento em massa no país: a miséria, a falta de perspectiva de vida da juventude e a guerra aos pobres e negros, eufemisticamente chamada de “guerra às drogas”, que faz com o Brasil esteja situado no terceiro lugar no ranking de encarceramento do mundo. Ao reverso, buscam atribuir toda culpa pelo crescimento da violência à juventude pobre, pois “ser bandido é questão de escolha”, dizem.
Na verdade, o crescimento da violência é produto direto da barbarização das condições de vida dos trabalhadores pela burguesia, é produto da opressão insuportável, da superexploração exercida pelo grande capital contra os trabalhadores e suas camadas mais precarizadas. A caçada de extermínio da direita contra os direitos históricos, como o auxílio reclusão, e contra a defesa dos direitos humanos em geral, comprova a barbarização do capitalismo brasileiro, cada vez mais fascistóide e desumano. A mesma direita que condena o direito ao aborto das trabalhadoras, é a que criminaliza seus filhos com a redução da maioridade penal, é a que se opõe a que recebam o benefício do auxilio reclusão depositado pelo desconto do salário de seus pais. Se os filhos da classe trabalhadora reagem como bichos é porque como bichos tem sido criados e lhes é negado um futuro digno de seres humanos pelo capitalismo. Então, sob mais violência de classe, aumenta a violência social, os assassinatos, que chegam a 61 mil no ano passado. Diante do aumento da violência a burguesia propõe mais violência repressiva, mais prisões, intervenção militar, ... A indústria do medo, que histeriza a burguesia fascista e a classe média de direita, e vende ilusões de segurança para a população trabalhadora, tem alimentado esse círculo vicioso e sido usada cretinamente como uma justificativa para mil e uma medidas de aumento da própria repressão social e da exploração econômica, inclusive, para a militarização do regime político golpista.
Dentre os direitos e garantias fundamentais, a Constituição Federal de 1988 se proíbe as penas cruéis (art. 5º , XLVII , e , CF/88), e garante ao cidadão-preso o respeito à integridade física e moral (art. 5º , XLIX , CF/88). A realidade atual comprova que dominação burguesa tornou-se incompatível com a existência dos direitos e garantias fundamentais, com os direitos humanos, trabalhistas e previdenciários. Essa é mais uma tarefa histórica, democrática que a burguesia foi incapaz de assegurar ao conjunto da sociedade e que cabe a classe trabalhadora lutar por conquista-la, assim como o fim da concentração imobiliária, o analfabetismo funcional, a desigualdade regional, como parte da luta pela revolução social.
Desta forma, é dever de todos que se reivindique defensor dos direitos da classe operária expor toda campanha de mentira em torno do auxílio-reclusão, pois tem como fundamento a eliminação de mais um direito da classe trabalhadora sob um discurso mentiroso, sem qualquer ligação com a realidade, como é comum aos discursos fascistas.