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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

A NATUREZA DE CLASSE DA URSS

A Natureza de Classe da URSS
Leon Trotsky - 1933

Publicamos em nosso blog um dos mais brilhantes e pedagógicos textos sobre o caráter de classe da União Soviética, escrito pelo dirigente da revolução social russa, Leon Trotsky.

Acima, imagem rara de Trotsky discursando em 1922 na URSS,
tendo a companhia de Lenin e Kamenev no palanque. A imagem
mais popular, quando Lenin troca de lugar com Trotsky, foi
adulterada pelo stalinismo para apagar Kamenev e Trotsky da história
A ruptura com a Internacional Comunista e a orientação de formar uma nova internacional colocaram novamente o problema do caráter de classe da URSS. Será que o desastre da Internacional Comunista não significa também, ao mesmo tempo, o do estado que surgiu da Revolução de Outubro? Certamente, ambas as instâncias têm a ver com a mesma organização dominante: o aparato stalinista. Este aplicou os mesmos métodos dentro da URSS e no terreno internacional. Nós, os marxistas, nunca fomos partidários do duplo sistema de contabilidade dos brandleristas [ 1 ], segundo o qual a política dos stalinistas é impecável na URSS e catastrófica fora de suas fronteiras. Estamos convencidos de que é igualmente catastrófica em ambos os terrenos. Se é assim, não se deve reconhecer, então, que o colapso da Internacional Comunista é simultâneo à liquidação da ditadura proletária na URSS?

À primeira vista, esse raciocínio parece irrefutável. Mas é errôneo. Embora os métodos da burocracia stalinista sejam homogêneos em todos os terrenos, os resultados objetivos desses métodos dependem das condições externas ou, para usar a linguagem da mecânica, da resistência do material. A Internacional Comunista era um instrumento para a destruição do sistema capitalista e o estabelecimento da ditadura do proletariado. O governo soviético é um instrumento para a preservação das conquistas já obtidas. Os partidos comunistas do Ocidente não herdaram nenhum capital. Sua força (na realidade, sua debilidade) reside única e exclusivamente neles mesmos. Nove décimos da força do aparato stalinista não residem nele mesmo, e sim nas mudanças provocadas pela revolução triunfante. Esta consideração, em si, não resolve a questão, mas é de grande importância metodológica. Ela nos demonstra como e por que o aparato estalinista pôde perder totalmente o sentido como fator revolucionário internacional e, contudo, manter parte de seu significado progressivo como guardião das conquistas sociais da revolução proletária. Esta posição dual podemos acrescentar — constitui em si mesma uma manifestação da desigualdade do desenvolvimento histórico.

A política correta de um Estado operário não se reduz apenas à construção econômica nacional. Se a revolução não se expande em nível internacional, seguindo a espiral proletária, dentro dos limites nacionais começará inevitavelmente a contrair-se seguindo a espiral burocrática. Se a ditadura do proletariado não se estender em nível europeu e mundial, começará a marchar rumo à derrota. Tudo isto é completamente indiscutível numa perspectiva histórica ampla. Mas as coisas se definem em períodos históricos concretos. É possível dizer que a política da burocracia stalinista já levou à liquidação do Estado operário? Este é o problema agora.

Contra a afirmação de que o Estado operário já está praticamente liquidado ergue-se, em primeiro lugar, a importante posição metodológica do marxismo. A ditadura do proletariado se impôs através de uma transformação política e de uma guerra civil que durou três anos. Tanto a teoria da sociedade de classes como a experiência histórica atestam a impossibilidade da vitória do proletariado através de métodos pacíficos, ou seja, sem grandiosas batalhas de classe, travadas de armas nas mãos. Nesse caso, como se pode conceber uma contra-revolução burguesa imperceptível, "gradual"? Pelo menos até agora, tanto as contra-revoluções feudais como as burguesas nunca se deram "organicamente"; exigiram, inevitavelmente, a intervenção armada. Em última instância, as teorias reformistas — na medida em que o reformismo possa chegar à teoria — foram sempre baseadas na incapacidade de compreender que os antagonismos de classe são profundos e irreconciliáveis; daí a perspectiva de uma transformação pacífica do capitalismo em socialismo. A tese marxista relativa ao caráter catastrófico da transferência do poder das mãos de uma classe às de outra irão se aplica somente às épocas revolucionárias, nas quais a história avança varrendo loucamente tudo, mas também às épocas contra-revolucionárias, nas quais a sociedade retrocede. Quem afirma que o governo soviético foi mudando gradualmente de proletário para burguês limita-se, por assim dizer, a projetar de trás para diante o filme do reformismo.

Nossos adversários podem negar o caráter metodológico geral dessa proposição e declarar que, por mais importante que seja, revela-se contudo excessivamente abstrata para resolver o problema. A verdade é sempre concreta. A tese da irreconciliabilidade das contradições de classe pode orientar-nos em nossa análise, mas não substituir os seus resultados. É preciso investigar profundamente o conteúdo material do próprio processo histórico.

Respondemos que é certo que um argumento metodológico não esgota o problema. Mas, de qualquer forma, transfere o ônus da prova para a outra parte. Os críticos que se consideram marxistas têm que demonstrar de que maneira a burguesia, que perdeu o poder após uma luta de três anos, conseguiu reconquistá-lo sem travar uma única batalha. Contudo, visto que nossos oponentes nem sequer procuram dar algum tipo de expressão teórica à sua caracterização do estado soviético, tentaremos aqui realizar este trabalho por eles.

O argumento mais difuso, popular e, à primeira vista, irrefutável acerca do caráter não-proletário do atual estado soviético é o que se refere ao estrangulamento das liberdades das organizações proletárias e à onipotência da burocracia. É realmente possível identificar a ditadura de um aparato, que conduziu à ditadura de uma só pessoa, com a ditadura do proletariado como classe? Não é evidente que a ditadura do proletariado exclui a ditadura sobre o proletariado?

Esse raciocínio atraente não está construído sobre uma análise materialista do processo, tal como se desenvolve na realidade, e sim, sobre esquemas puramente idealistas, sobre normas kantianas. Alguns nobres "amigos" da revolução formaram uma idéia muito brilhante da ditadura do proletariado e ficam completamente transtornados com o fato de que a ditadura real, com a sua herança da barbárie de classe, com as suas contradições internas, com os erros e crimes da direção, não se parece em nada à bela imagem que fizeram. Destruídas as suas mais formosas ilusões, dão as costas à União Soviética.

Onde, em que livros é possível encontrar a receita perfeita para uma ditadura proletária? A ditadura de uma classe não significa, absolutamente, que toda a massa dessa classe participe sempre da administração do Estado. Observamos isso, para começar, no caso das classes proprietárias. A nobreza governava através da monarquia, perante a qual o nobre punha-se de joelhos. A ditadura da burguesia só apresentou formas democráticas relativamente desenvolvidas nas condições do ascenso capitalista, quando a classe dominante não tinha nada a temer. Diante dos nossos próprios olhos, na Alemanha, a democracia foi suplantada pela autocracia de Hitler, que esmigalhou todos os partidos burgueses tradicionais. Hoje a burguesia alemã não governa diretamente, está politicamente submetida a Hitler e suas quadrilhas. No entanto, a ditadura da burguesia permanece intacta, já que se mantiveram e fortaleceram todas as condições de sua hegemonia social. Ao expropriar politicamente a burguesia, Hitler a salvou, embora provisoriamente, da expropriação econômica. O fato de que a burguesia tenha se visto obrigada a recorrer ao regime fascista demonstra que sua hegemonia estava em perigo, mas não que havia desaparecido.

Antecipando-se a nossos próximos argumentos, nossos adversários se apressarão a replicar: mesmo que a burguesia, como minoria exploradora, possa manter sua hegemonia também através de uma ditadura fascista, o proletariado não pode construir a sociedade socialista sem administrar seu próprio governo, atraindo massas populares cada vez mais amplas para cumprir diretamente esta tarefa. Em seu caráter geral este argumento é indiscutível, mas, neste caso específico, significa apenas que a atual ditadura soviética é uma ditadura doente. As terríveis dificuldades da construção socialista num país isolado e atrasado, unidas à falsa política da direção — que, em última instância, também reflete a pressão do atraso e do isolamento —, levaram a burocracia a expropriar politicamente o proletariado para proteger suas conquistas sociais com seus próprios métodos. As relações econômicas da sociedade determinam sua anatomia. Enquanto as formas de propriedade criadas pela Revolução de Outubro não forem liquidadas, o proletariado continuará sendo a classe dominante.

Os discursos sobre "a ditadura da burocracia sobre o proletariado", sem uma análise muito mais profunda, ou seja, sem uma explicação clara das raízes sociais e dos limites de classe da dominação burocrática, se diluem em meras frases democráticas, dessas que são tão populares entre os mencheviques. Não há dúvida de que a imensa maioria dos operários soviéticos está descontente com a burocracia e de que um setor considerável, certamente não o pior, a odeia. Contudo, não se deve somente à repressão o fato de que esta insatisfação não assuma formas massivas violentas; os operários temem aplanar o caminho para o inimigo de classe se derrubarem a burocracia. As relações entre a burocracia e a classe operária são muito mais complexas do que supõem os "democratas" superficiais. Os operários soviéticos já teriam acertado as contas com o despotismo do aparato se fossem outras as perspectivas que se abrem diante deles; se o horizonte ocidental, em vez do tom pardo do fascismo, se incendiasse com o vermelho da revolução. Enquanto isto não ocorre, o proletariado, rangendo os dentes, sustenta ("agüenta") a burocracia e, neste sentido, a reconhece como porta-voz da ditadura do proletariado. Numa conversa pessoal, nenhum operário soviético economizará xingamentos para qualificar a burocracia. Mas nenhum admitirá que a contra-revolução já aconteceu. O proletariado é a espinha dorsal do estado soviético. Mas, dado que a função de governar está concentrada nas mãos de uma burocracia irresponsável, temos diante de nós um estado obviamente doente. É possível curá-lo? As tentativas de curá-lo não significarão um estéril desperdício de tempo precioso? A questão está mal colocada. Não se trata de recorrer a todo tipo de medidas artificiais, independentes do movimento revolucionário mundial, e sim de travar uma luta sob as bandeiras do marxismo. A crítica implacável à burocracia stalinista, a educação dos quadros da nova internacional para reconstituir a capacidade de luta da vanguarda proletária mundial: esta é a essência da "cura". Ela coincide com o rumo fundamental do processo histórico.

Durante estes últimos anos, nossos adversários, muito corretamente, nos disseram muitas vezes que estávamos "perdendo tempo", tentando curar a Internacional Comunista. Nunca prometemos a ninguém curar a Internacional. Somente nos negamos a dar o doente por morto ou agonizante, até que chegasse o momento da prova decisiva. De qualquer maneira, não perdemos um só dia "curando-a". Formamos quadros revolucionários e, não menos importante, preparamos as posições teóricas e programáticas fundamentais da nova internacional.

Os senhores sociólogos "kantianos" (pedimos desculpas à imagem de Kant) amiúde chegam à conclusão de que uma "real" ditadura do proletariado, ou seja, conforme as suas normas ideais, só existiu nos dias da Comuna de Paris, ou no primeiro período da Revolução de Outubro, até a paz de Brest-Litovsk, ou, no máximo, até a NEP. Isto, certamente, é ir longe demais! Se Marx e Engels consideraram "ditadura do proletariado" a Comuna de Paris, foi somente pelas possibilidades que ela apontava. Mas, em si mesma, a Comuna não era ainda a ditadura do proletariado. Depois de tomar o poder, mal soube utilizá-lo; em vez de tomar a ofensiva, esperou; permaneceu isolada no âmbito de Paris; não ousou tocar nos bancos estatais; não conseguiu alterar as relações de propriedade porque não tomou o poder à escala nacional. A isto deve-se somar a unilateralidade blanquista e os preconceitos proudhonistas, que impediram que até os dirigentes do movimento assumissem plenamente a Comuna como ditadura do proletariado.

Igualmente infeliz é a referência à primeira época da Revolução de Outubro. Não só até a paz de Brest-Litovsk senão até o outono de 1918, o conteúdo social da revolução limitava-se a uma reforma agrária pequeno-burguesa e ao controle operário da produção. Isto significa que, na prática, a revolução não havia superado os limites da sociedade burguesa. Durante esta primeira etapa, os sovietes de soldados governavam ombro a ombro com os sovietes operários, e freqüentemente os deixaram de lado. Somente no outono de 1918 a primeira onda de soldados e camponeses retrocedeu um pouco aos limites naturais e os operários tomaram a dianteira, com a nacionalização dos meios de produção. Só a partir desse momento é que se pode falar da instauração de uma verdadeira ditadura do proletariado; e mesmo assim, com muitas reservas. Naqueles primeiros anos, a ditadura ficou limitada aos limites geográficos do velho principado de Moscou e se viu obrigada a travar uma guerra de três anos em todo o raio de Moscou até a periferia. Ou seja, até 1921, precisamente até a NEP, o que houve foi uma luta para implantar a ditadura do proletariado em escala nacional. E se, como pensam os filisteus pseudo-marxistas, a ditadura desapareceu com o começo da NEP, então se pode dizer que nunca existiu. Para estes cavalheiros, a ditadura do proletariado é simplesmente um conceito imponderável, uma norma ideal irrealizável neste mundo de pecado. Não é de se estranhar que os "teóricos" deste modelo, na medida em que não esclarecem minimamente a própria palavra ditadura, pretendam ocultar a contradição irreconciliável entre esta e a democracia burguesa.

Da perspectiva de laboratório e não de um ponto de vista político, é muito característica a seita parisiense dos "democratas comunistas" (Souvarine e Cia.). O seu próprio nome indica uma ruptura com o marxismo. Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx rechaçava o nome de social-democracia por colocar a luta socialista revolucionária sob o controle formal da democracia. É evidente que não há diferença de princípios entre ser "democrata comunista" e ser "democrata socialista", ou seja, social-democrata. Não existe uma divisão precisa e bem delimitada entre o socialismo e o comunismo. A transgressão começa quando o socialismo e o comunismo, como movimento ou como estado, não se subordinam ao verdadeiro curso nem às condições materiais do processo histórico, e sim à abstração supra-social e supra-histórica da "democracia", que é na realidade uma arma defensiva da burguesia contra a ditadura proletária. Se na época do Programa de Gotha (1875) ainda se podia ver na palavra social-democracia apenas uma denominação incorreta e anti-científica para um partido sadiamente proletário, toda a história posterior da democracia burguesa e da "social" democracia faz, da reivindicação de "comunismo (?) democrático" uma direta traição de classe [ 2 ].

Um adversário do tipo de Urbahns dirá que é certo que ainda não se restaurou o regime burguês, mas que também já não existe um estado operário; o atual regime soviético estaria regido por um governo supra ou interclassista, bonapartista. Em outra época já ajustamos as contas com esta teoria. Historicamente, o bonapartismo foi e continua sendo o governo da burguesia durante os períodos de crise da sociedade burguesa. É possível e necessário distinguir entre o bonapartismo "progressivo", que consolida as conquistas puramente capitalistas da revolução burguesa, e o da decadência da sociedade capitalista, o convulsivo bonapartismo de nossa época (Von Papen, Schleicher, Dollfuss, Colijn — o candidato ao bonapartismo holandês — etc.). O bonapartismo implica sempre na oscilação política entre as classes, mas em todas as suas reencarnações históricas conservou uma só e única base social: a propriedade burguesa. Nada mais absurdo do que tirar a conclusão de que o estado bonapartista não é classista, julgando por sua oscilação entre as classes ou pela posição "supraclassista" da camarilha que o governa. Que aberração! O bonapartismo não passa de uma das variedades de hegemonia capitalista.

Se Urbahns pretende estender o conceito de bonapartismo, incluindo também o atual regime soviético, estamos dispostos a aceitar essa interpretação ampliada, mas com uma condição: que se defina, com a necessária clareza, o conteúdo social do "bonapartismo" soviético. É absolutamente correto que o autogoverno da burocracia soviética foi construído com base na oscilação entre as diferentes forças de classe, tanto internas como internacionais. Na medida em que a oscilação burocrática entre as classes culminou no regime plebiscitário e pessoal de Stalin, pode-se falar de bonapartismo soviético. Mas enquanto o bonapartismo dos dois Bonapartes e de seus lamentáveis seguidores atuais se desenvolveu e se desenvolve sobre um regime burguês, o bonapartismo da burocracia soviética ergue-se sobre a base de um regime soviético. As inovações terminológicas e as analogias históricas podem ser, de alguma maneira, úteis para a análise, mas não podem mudar o caráter social do estado soviético.

"CAPITALISMO DE ESTADO"

A propósito, Urbahns criou recentemente uma nova teoria: parece que a estrutura econômica soviética é uma variedade do "capitalismo de estado". Há um certo "progresso" no fato de Urbahns ter baixado de seus exercícios terminológicos na esfera da superestrutura política, para os fundamentos econômicos. Mas não se saiu bem na caminhada.

Segundo Urbahns, a mais nova forma de autodefesa do regime burguês é o capitalismo de estado: basta dar uma olhada no estado corporativo "planificado" da Itália, da Alemanha e dos Estados Unidos. Acostumado aos gestos grandiloqüentes, inclui também a URSS. Falaremos adiante deste problema. Urbahns observa um fenômeno muito importante dos estados capitalistas de nossa época. Para o capitalismo monopolista, há muito tempo se tornaram apertados os limites da propriedade privada dos meios de produção e do Estado nacional. Contudo, paralisada pelas suas próprias organizações, a classe operária foi incapaz de atuar a tempo para liberar as forças produtivas da sociedade de seus grilhões capitalistas. Desse fato surgem as prolongadas convulsões econômicas e políticas. As forças produtivas entram em choque com as barreiras da propriedade privada e das fronteiras nacionais. Os governos burgueses se vêem obrigados a recorrer ao bastião policial para esmagar o motim de suas próprias forças produtivas. Isso é o que significa a chamada economia planificada. Na medida em que o estado tenta frear e disciplinar a anarquia capitalista, pode-se falar, condicionalmente, de "capitalismo de estado".

Mas temos que recordar que originalmente os marxistas entendiam por capitalismo de estado unicamente as empresas econômicas independentes que eram de propriedade do estado. Quando os reformistas sonhavam em superar o capitalismo através da municipalização ou nacionalização de um número cada vez maior de empresas industriais e de transporte, os marxistas replicavam, para refutá-los: isso não é socialismo e sim capitalismo de estado. Mas posteriormente este conceito adquiriu um sentido mais amplo e começou a ser aplicado a todos os tipos de intervenção estatal na economia; os franceses utilizam, neste sentido, a palavra étatisme (estatismo).

Mas Urbahns, além de expor as transformações do capitalismo de Estado, as interpreta a seu modo. Pelo que é possível entender do que diz, declara que o regime do "capitalismo de Estado’’ constitui uma etapa progressiva e necessária do desenvolvimento da sociedade, no mesmo sentido em que os trustes são progressivos em comparação à dispersão das empresas. Um erro tão fundamental na caracterização da planificação capitalista é suficiente para liquidar qualquer acerto.

Durante o ascenso capitalista, que terminou com a guerra, era possível — sob certas condições políticas — considerar como manifestações progressivas as diversas formas de estatização, ou seja, considerar que o capitalismo de estado impulsiona a sociedade para a frente e facilita a futura tarefa econômica da ditadura proletária. Mas a atual "economia planificada" deve ser considerada uma etapa completamente reacionária; o capitalismo de Estado pretende afastá-la da divisão mundial do trabalho, adaptar as forças produtivas ao leito de Procusto do estado nacional, restringir artificialmente a produção de alguns setores e criar, de maneira igualmente artificial, outros setores, através de enormes investimentos improdutivos. A política econômica do estado atual — que começa com impostos ao estilo da velha China e chega às ocasionais proibições de utilizar maquinaria na "economia planificada" de Hitler — consegue uma regulagem instável, às custas da deterioração da economia nacional, de provocar o caos nas relações mundiais e de perturbar totalmente o sistema monetário, que será muito necessário para a planificação socialista. O atual capitalismo de estado não prepara nem aplana a tarefa futura do estado socialista, mas, pelo contrário, lhe cria colossais dificuldades adicionais. O proletariado deixou passar muitas oportunidades de tomar o poder. Com isso criou as condições políticas para a barbárie fascista e as condições econômicas para a obra destrutiva do "capitalismo de estado". Depois da conquista do poder, o proletariado terá que pagar, no plano da economia, os seus erros políticos.

Contudo, o que mais nos interessa, dentro dos limites desta análise, é a tentativa de Urbahns de incluir a economia da URSS no "capitalismo de Estado". E para isso toma como referência — custa acreditar! — Lenin. Só há uma explicação possível para esta referência: como eterno inventor, criador de uma teoria nova por mês, Urbahns não tem tempo de ler os livros que cita. É certo que Lenin aplicou o termo "capitalismo de Estado", mas não à economia soviética de conjunto, somente a um determinado setor dela: às concessões ao capital estrangeiro, às companhias industriais e comerciais mistas e, em parte, às cooperativas camponesas, fundamentalmente dos kulaks (camponeses ricos), sob controle estatal. Indubitavelmente todos estes são elementos de capitalismo; mas como estão controlados pelo estado, e inclusive, por sua participação direta, funcionam como companhias mistas, condicionalmente ou, segundo sua própria expressão, "entre aspas" Lenin chamou "capitalismo de Estado" a estas formas econômicas. O condicionamento deste termo provém de que se trata de um estado proletário, não de um estado burguês; com as aspas queria acentuar esta importante diferença. Contudo, na medida em que o estado proletário aceitava o capital privado e lhe permitia, com certas restrições, explorar os trabalhadores, abrigava sob uma de suas alas determinadas relações burguesas. Neste sentido estritamente limitado é que se pode falar de "capitalismo de Estado".

Lenin criou essa expressão no momento da transição à NEP, quando supunha que as concessões e as "companhias mistas", ou seja, as empresas baseadas na conjunção de capital estatal e privado, ocupariam na economia soviética uma posição paralela a dos trustes e corporações puramente estatais. Contrapondo-os às empresas capitalistas de estado — concessões etc. —, Lenin definia os trustes e sindicatos soviéticos como "empresas de tipo socialista conseqüente". Previa o desenvolvimento ulterior da economia soviética, particularmente da indústria, como uma concorrência entre as empresas capitalistas de estado e as puramente estatais.

Acreditamos que agora tenha ficado claro dentro de que limites Lenin utilizou essa expressão que fez Urbahns cair em tentação, Para destacar mais a catástrofe teórica desse dirigente do "Lenin (!) bund", recordemos que, contrariamente às expectativas originais de Lenin, nem as concessões nem as companhias mistas desempenharam um papel relevante no desenvolvimento da economia soviética. De modo geral, já não resta nada dessas empresas "capitalistas de Estado". Por outro lado, os trustes soviéticos, cujo destino parecia tão incerto no início da NEP, tiveram um desenvolvimento gigantesco após a morte de Lenin. Portanto, para utilizar a terminologia de Lenin conscientemente e com alguma compreensão do assunto, é preciso dizer que o desenvolvimento econômico soviético superou totalmente a etapa do "capitalismo de Estado’’ e seguiu o caminho das empresas "de tipo socialista conseqüente’’.

Devemos também esclarecer qualquer possível mal-entendido no sentido contrário. Lenin escolheu seus termos com precisão. Não considerou os trustes como empresas socialistas, como as chamam agora os stalinistas, e sim empresas "de tipo socialista". Na pena de Lenin, esta útil distinção terminológica implicava que os trustes só terão o direito de ser chamados de socialistas — não por seu tipo, não por sua tendência, e sim por seu conteúdo genuíno — quando se revolucionar a economia rural, quando se destruir a contradição entre a cidade e a aldeia, quando os homens aprenderem a satisfazer plenamente suas necessidades; em outras palavras, somente na medida em que, sobre as bases da indústria nacionalizada e da economia rural coletivizada, surgir uma verdadeira sociedade socialista. Lenin julgava que a conquista desse objetivo exigia o trabalho sucessivo de duas ou três gerações, sobretudo realizado em indissolúvel conexão com a revolução internacional.

Resumindo: devemos entender por capitalismo de estado, no sentido estrito do termo, a administração, pelo estado burguês, por conta própria, de empresas industriais ou outras, ou a intervenção reguladora do Estado burguês no funcionamento das empresas capitalistas privadas. Lenin entendia por capitalismo de Estado "entre aspas" o controle do estado proletário sobre as empresas e relações capitalistas privadas. Nenhuma dessas definições se aplica, sob nenhum ponto de vista, à atual economia soviética. Continua sendo um profundo mistério qual o conteúdo econômico concreto que o próprio Urbahns atribui à sua caracterização do "capitalismo de Estado" soviético. Para falar francamente, sua mais nova teoria está inteiramente construída sobre uma citação mal lida.

Existe ainda outra teoria referente ao "caráter não-proletário’’ do estado soviético, muito mais engenhosa, muito mais cautelosa, mas nem por isso mais seria. O social-democrata francês Lucien Laurat, colega de Blum e mestre de Souvarine, escreveu um folheto defendendo a posição de que o estado soviético, que não é nem proletário nem burguês, representa um tipo absolutamente novo de organização de classe, porque a burocracia domina não só política, mas também economicamente o proletariado, porque devora a mais-valia que antes ia parar nas mãos da burguesia. Laurat escora suas revelações nas contundentes fórmulas d’O Capital, e dessa maneira outorga um ar de profundidade à sua "sociologia" superficial e puramente descritiva. Evidentemente esse compilador não sabe que toda a sua teoria foi formulada há trinta anos, com muito mais fogo e esplendor, pelo revolucionário russo-polonês Majaiski, superior a seu divulgador francês porque não esperou a Revolução de Outubro, nem a burocracia stalinista para definir a "ditadura do proletariado" como um trampolim para que uma burocracia exploradora alcance os postos de comando. Mas não foi sequer Majaiski quem inventou essa teoria; ele não fez mais que "aprofundar" sociológica e economicamente os preconceitos anarquistas contra o socialismo de estado. Além disso, Majaiski também utilizou as formulações de Marx, mas de maneira muito mais coerente que Laurat; segundo ele, o autor d’O Capital, com previdente malícia, ocultou em suas fórmulas sobre a reprodução (volume II) a parte da mais-valia que seria devorada pela intelectualidade socialista (burocracia).

Em nossa época, Miasnikov defendeu uma "teoria" similar, embora sem denunciar Marx como explorador; proclamou que na União soviética, a ditadura do proletariado havia sido suplantada pela hegemonia de uma nova classe, a burocracia social. Provavelmente, Laurat tomou sua teoria, direta ou indiretamente, de Miasnikov, embora revestindo-a com um pedantesco ar "ilustrado". Para completar, é necessário acrescentar que Laurat assimilou todos os erros (e somente os erros) de Rosa Luxemburgo, inclusive aqueles aos quais ela mesma havia renunciado.

Mas examinemos mais de perto a própria "teoria". Para um marxista, o termo classe tem um significado especialmente importante e também cientificamente rigoroso. Uma classe não se define apenas por sua participação na distribuição da renda nacional, e sim por seu papel independente na estrutura econômica geral e por suas raízes independentes nos fundamentos econômicos da sociedade. Cada classe (a nobreza feudal, o campesinato, a pequena-burguesia, a burguesia capitalista e o proletariado) exerce suas próprias formas específicas de propriedade. A burocracia carece dessas características sociais. Não ocupa uma posição independente no processo de produção e distribuição. Não tem raízes de propriedade independentes. Suas funções se relacionam basicamente com a técnica política do domínio de classe. A existência de uma burocracia, em suas diversas formas e com diferenças em seu peso específico, caracteriza todo regime de classes. Seu poder é de caráter reflexo. A burocracia está indissoluvelmente ligada a uma classe econômica dominante, alimenta-se das raízes sociais desta, se sustenta e cai junto com ela.

EXPLORAÇÃO DE CLASSE E PARASITISMO SOCIAL

Laurat dirá que "não tem objeções" a que a burocracia receba pagamento pelo seu trabalho, na medida em que cumpra com as funções políticas, econômicas e culturais necessárias; o problema reside em sua apropriação incontrolada de uma parte absolutamente desproporcional da renda nacional; precisamente neste sentido aparece como a "classe exploradora". Esse argumento, baseado em fatos indiscutíveis, não muda, contudo, a fisionomia social da burocracia.

Sempre e em todo regime a burocracia devora uma porção considerável de mais-valia. Seria interessante, por exemplo, calcular que porção da renda nacional devoram, na Itália ou na Alemanha, os gafanhotos fascistas. Mas este fato, que em si não carece de importância, é totalmente insuficiente para transformar a burocracia fascista numa classe dominante independente. São os mercenários da burguesia. É verdade que estes mercenários montam na garupa de seu patrão, às vezes lhe arrancam da boca os bocados mais suculentos e ainda por cima lhe cospem na cara. Digam o que disserem, são mercenários sumamente incômodos! Mesmo assim, não passam de mercenários. A burguesia os tolera porque precisa deles para que ela e seu regime não sejam levados para o inferno.

Mutatis mutandis, o que foi dito acima vale também para a burocracia stalinista. Devora, desperdiça e rouba uma porção considerável da renda nacional. Sua administração custa muito caro ao proletariado. Ocupa na sociedade soviética uma posição extremamente privilegiada, não só porque goza de prerrogativas políticas e administrativas, mas também de enormes vantagens materiais. Contudo, os maiores apartamentos, os bifes mais suculentos e os Rolls-Royce não bastam para transformar a burocracia numa classe dominante independente.

Certamente, numa sociedade socialista seria absolutamente impossível a desigualdade, e mais ainda uma desigualdade tão óbvia. Mas, apesar das mentiras oficiais e semi-oficiais, o atual regime soviético não é socialista e sim transitório. Ainda arrasta a monstruosa herança do capitalismo, particularmente a desigualdade social, não somente entre a burocracia e o proletariado como também dentro da própria burocracia e dentro do proletariado. Nesta etapa, a desigualdade continua sendo, dentro de certos limites, o instrumento burguês do progresso socialista; os salários diferenciados, os bônus etc., são utilizados como estímulos para a produção.

Ainda que explique a desigualdade, o caráter transitório do atual sistema de nenhum modo justifica esses monstruosos e evidentes privilégios que se arrogaram os incontroláveis dirigentes da burocracia. A Oposição de Esquerda não esperou as revelações de Urbahns, Laurat, Souvarine, Simone Weil [ 3 ] etc., para anunciar que a burocracia, em todas as suas manifestações, está esmagando as raízes morais da sociedade soviética, gerando uma aguda e lícita insatisfação entre as massas e preparando o terreno para grandes perigos. Contudo, por si mesmos, os privilégios da burocracia não mudam as bases da sociedade soviética, porque ela não retira seus privilégios de relações de propriedade especiais que lhes sejam peculiares como "classe", mas sim das relações de propriedade criadas pela Revolução de Outubro, fundamentalmente adequadas à ditadura do proletariado.

Para falar claramente, na medida em que a burocracia rouba o povo (e o fazem, de diferentes maneiras, todas as burocracias), não estaremos diante da exploração de classe, no sentido científico do termo, e sim do parasitismo social, mas em escala muito ampla. Na Idade Média, o clero constituía uma classe ou estamento, já que seu domínio dependia de um determinado sistema de propriedade da terra e trabalho forçado. A Igreja atual não constitui uma classe exploradora mas uma corporação parasitária. Seria realmente uma estupidez falar do clero norte-americano como de uma classe dominante específica; contudo é indubitável que nos Estados Unidos os sacerdotes de diferentes cores e denominações devoram uma grande porção de mais-valia. Por seus traços de parasitismo, a burocracia, tal como o clero, se assemelha ao lumpen-proletariado que, como se sabe, tampouco representa uma "classe" independente.

O problema estará formulado com mais amplitude se não o encararmos estática mas, sim, dinamicamente. Na medida em que se apropria improdutivamente de uma tremenda porção da renda nacional, a burocracia soviética, por suas próprias funções, tem interesse no avanço econômico e cultural do país; quanto maior a renda nacional, maiores serão seus privilégios. Ao mesmo tempo, sobre os fundamentos sociais do estado soviético, o progresso econômico e cultural das massas trabalhadoras tende necessariamente a solapar as próprias bases da dominação burocrática. Obviamente, à luz desta afortunada variante histórica, a burocracia passa a ser apenas o instrumento — um instrumento ruim e caro — do estado socialista.

Mas, poderão argumentar, ao apropriar-se de uma porção cada vez maior da renda nacional e perturbar as proporções básicas da economia, a burocracia atrasa o desenvolvimento econômico e cultural do país. Absolutamente correto! A continuidade do crescimento desenfreado do burocratismo deve levar inevitavelmente ao estancamento do crescimento econômico e cultural, a uma terrível crise social e à deterioração de toda a sociedade. Mas isso implicaria não só a liquidação da ditadura do proletariado, como também o fim da dominação burocrática. O estado operário não seria substituído por relações "social-burocráticas", mas sim capitalistas.

Confiamos que, ao colocar a questão desta perspectiva, poderemos resolver, de uma vez por todas, a controvérsia sobre o caráter de classe da URSS. Tanto se tomarmos a variante de êxito futuro do regime soviético ou, pelo contrário, a de sua liquidação, em ambos os casos a burocracia não se revela uma classe independente, e sim uma excrescência do proletariado. Um tumor pode aumentar tremendamente de tamanho e até estrangular o organismo vivo, mas não pode transformar-se num organismo independente.

Por fim, cabe acrescentar, para maior clareza, que se hoje o partido marxista estivesse no poder na URSS, iria renovar todo o regime político, iria deixar de lado a burocracia, expurgá-la e colocá-la sob controle das massas, iria transformar as práticas administrativas e inaugurar uma série de reformas fundamentais na administração da economia; mas de nenhuma maneira teria que se propor a uma mudança nas relações de propriedade, ou seja, a uma nova revolução social.

A burocracia não é uma classe dominante. Mas o ulterior desenvolvimento do regime burocrático pode levar não organicamente, por degeneração, mas através da contra-revolução ao surgimento de uma nova classe dominante. Chamamos de centrista o aparato stalinista precisamente porque desempenha um duplo papel: hoje, quando já não existe uma direção marxista, e nenhuma perspectiva imediata de que surja, defende com seus próprios métodos a ditadura proletária; mas estes métodos facilitam a futura vitória do inimigo. Quem não entende este duplo papel desempenhado pelo estalinismo na URSS, não entende nada da questão.

Na sociedade socialista não haverá partido nem estado. Mas na etapa de transição, a superestrutura política desempenha um papel decisivo. Uma ditadura do proletariado desenvolvida e estável pressupõe que o partido funcione como vanguarda, cumprindo as funções de direção, que o proletariado esteja unificado nos sindicatos, que os trabalhadores estejam indissoluvelmente ligados ao estado através do sistema de sovietes e finalmente que, através da Internacional, o estado operário crie uma unidade combatente com o proletariado mundial. Por enquanto, a burocracia estrangulou o partido, os sindicatos, os sovietes e a Internacional Comunista. Nem é preciso explicar aqui que à social-democracia internacional, tão manchada por crimes e traições — e à qual, diga-se de passagem, pertence o senhor Laurat [ 4 ] —, cabe uma gigantesca parte da culpa pela degeneração do regime proletário.

Mas seja qual for a repartição real da responsabilidade histórica, o resultado continua sendo o mesmo: o estrangulamento do partido, dos sovietes e dos sindicatos acarreta a atomização política do proletariado. Os antagonismos sociais, em vez de serem superados politicamente, são suprimidos administrativamente. Na medida em que desaparecem os recursos políticos para resolvê-los normalmente, ficam reprimidos. O primeiro choque social, externo ou interno, pode lançar à guerra civil a atomizada sociedade soviética. Os operários, perdido o controle do estado e da economia, podem fazer das greves de massa uma arma defensiva. Isto romperia a disciplina da ditadura. Perante o ataque dos trabalhadores e a pressão das dificuldades econômicas, os trustes se veriam obrigados a abandonar a planificação e entrar em concorrência entre si. A dissolução do regime repercutiria no campo com um eco violento e caótico e, inevitavelmente, recairia sobre o exército. O Estado socialista desapareceria, dando lugar ao regime capitalista ou, mais precisamente, ao caos capitalista.

Certamente, a imprensa stalinista reproduzirá esta análise preventiva como se fosse uma profecia contra-revolucionária, ou até um "desejo" explícito dos trotskistas. No que diz respeito a esses escritores de aluguel do aparato, faz muito tempo que não temos outro sentimento que o de um silencioso desprezo. Em nossa opinião, a situação é perigosa, mas não totalmente desesperadora. De qualquer forma, seria um ato de profunda covardia e de traição direta dar por perdida, antes de travá-la, a maior das batalhas revolucionárias.

Se é verdade que a burocracia concentrou em suas mãos todo o poder e todas as vias de acesso ao poder — e assim é —, surge uma pergunta muito importante: como encarar a reorganização do estado soviético? É possível alcançar este objetivo com métodos pacíficos?

Antes de mais nada, temos que estabelecer como axioma imutável que o único que pode alcançar este objetivo é um partido revolucionário. A tarefa histórica fundamental é criar na URSS o partido revolucionário, com os elementos sadios do velho partido e com a juventude. Veremos adiante sob quais condições é possível conseguir isso. Suponhamos, contudo, que esse partido já existe. Através de que meios poderia tomar o poder? Já em 1927, Stalin disse, dirigindo-se à Oposição: "Só se pode eliminar a atual burocracia através da guerra civil’’. Esse desafio bonapartista não tinha como destinatário a Oposição de Esquerda, mas o próprio partido. Após concentrar em suas mãos todas as alavancas do poder, a burocracia proclamou abertamente que não permitiria que o proletariado voltasse a levantar a cabeça. O curso posterior dos acontecimentos tornou ainda mais contundente este desafio. Após as experiências dos últimos anos, seria infantil supor que se possa eliminar a burocracia stalinista através de um congresso do partido ou dos sovietes. Na realidade, o último congresso do Partido Bolchevique, o décimo-segundo, teve lugar a princípios de 1923. Todos os seguintes foram farsas burocráticas. E hoje até estes foram descartados. Não restam caminhos "constitucionais" normais para remover a camarilha dominante. Só pela força se poderá obrigar a burocracia a deixar o poder nas mãos da vanguarda proletária.

Imediatamente uivarão em coro os escritores de aluguel: os "trotskistas", como Kautsky, pregam a insurreição armada contra a ditadura do proletariado. Não vamos perder tempo com eles. O problema da tomada do poder se colocará praticamente ao novo partido quando este houver consolidado ao seu redor a maioria da classe operária. No processo dessa mudança radical na relação de forças, a burocracia se isolará e dividirá cada vez mais. Como sabemos, as raízes sociais da burocracia estão implantadas no proletariado, se não em seu apoio ativo, pelo menos na sua "tolerância". Quando o proletariado entrar em ação, o aparato stalinista ficará suspenso no ar. Se tentar resistir, terá que aplicar medidas, não de guerra civil, mas de caráter policial. De qualquer maneira, não se tratará de insurreição armada contra a ditadura do proletariado, mas da remoção de uma maligna excrescência.

A verdadeira guerra civil não se daria entre a burocracia stalinista e o proletariado insurgente, mas entre o proletariado e as forças ativas da contra-revolução. Nem há que falar que a burocracia possa desempenhar um papel independente no choque aberto entre os dois lados. Seus extremos se alinhariam em lados opostos da barricada. É claro que o desenvolvimento do processo será determinado pelo resultado da luta. O triunfo do lado revolucionário só é concebível sob a direção de um partido proletário, que seria naturalmente elevado ao poder pela vitória sobre a contra-revolução.

O que é mais provável, o perigo de liquidação do poder soviético esgotado pelo burocratismo ou a consolidação do proletariado em tomo de um novo partido capaz de salvar a herança de Outubro? Não existe resposta a priori para essa pergunta: a luta decidirá. Uma grande prova histórica talvez uma guerra determinará a relação de forças. Mas é evidente que não se poderá continuar a manter o poder soviético só com o apoio das forças internas, se continuar o retrocesso do movimento proletário mundial e a extensão da dominação fascista. A condição fundamental para reformar totalmente o poder soviético é a expansão vitoriosa da revolução mundial.

No Ocidente, o movimento revolucionário pode ressurgir, mesmo que não haja partido, mas não poderá tomar o poder sem essa direção. Em toda a época da revolução social, ou seja, durante décadas, o partido mundial foi o instrumento básico do progresso histórico. Urbahns, ao proclamar que as "velhas formas" estão superadas e que é necessário algo "novo" — o que precisamente? —, não faz mais do que demonstrar a sua confusão.., de forma não menos velha. O trabalho sindical, nas condições do capitalismo "planificado", e a luta contra o fascismo e a guerra iminente originarão, indubitavelmente, novos métodos e novos tipos de organização de luta. Só que, em vez de entregar-se, como os brandleristas, a fantasias sobre os sindicatos ilegais, há que estudar atentamente o curso real da luta, partindo das iniciativas dos próprios trabalhadores para estendê-las e generalizá-las. Mas para realizar esta tarefa é necessário, em primeiro lugar, um partido, ou seja, uma organização politicamente homogênea da vanguarda proletária. A posição de Urbahns é subjetiva; desiludiu-se do partido após ter levado ao desastre o seu próprio "partido".

Uns tantos novidadeiros proclamam que "faz muito tempo" diziam que são necessários novos partidos; agora, finalmente, os "trotskistas" chegaram à mesma conclusão; com o tempo, também compreenderão que a União Soviética não é um estado operário. Esta gente, em vez de estudar o processo histórico real, dedica-se a "descobrimentos" astronômicos. Já em 1921, a seita de Gorter e o "Partido Comunista Operário" da Alemanha decidiram que a Internacional Comunista estava condenada. Desde então, não escassearam prognósticos desse tipo (Loriot, Korsch, Souvarine etc.). Contudo, nada resultou destes "diagnósticos", porque refletiam apenas a desilusão subjetiva de determinados círculos e personalidades, e não as exigências objetivas do processo histórico. É precisamente por esta razão que estes novidadeiros vociferantes continuam à margem do processo [ 5 ].

O curso dos acontecimentos não segue um caminho predeterminado. Com a sua capitulação perante o fascismo, a Internacional Comunista ficou desacreditada perante as massas, não perante determinados indivíduos. Mas, mesmo depois do colapso da Internacional, continua existindo o Estado soviético, embora sua autoridade tenha diminuído bastante. Há que tomar os fatos como são realmente, e não teimar e morder os lábios como Simone Weil; não devemos ofender-nos com a história nem virar-lhe as costas.

Os novos partidos e a nova internacional, antes de mais nada, devem construir-se sobre bases sérias, principistas, que estejam à altura das necessidades da nossa época. Não alimentamos ilusões a respeito das deficiências e erros da bagagem teórica dos bolcheviques leninistas. Contudo, seu trabalho de dez anos criou as condições teóricas e estratégicas básicas para a construção da nova internacional.

Ombro a ombro com nossos aliados, impulsionaremos estas condições e as concretizaremos em base à crítica desenvolvida no processo real da luta.

A QUARTA INTERNACIONAL E A URSS

Na URSS, o núcleo do novo partido na realidade o partido bolchevique ressurgido sob novas condições — será o grupo dos bolcheviques leninistas. Até a imprensa oficial soviética testemunha que nossos adeptos realizam seu trabalho valentemente e não sem êxito. Mas não cabe alimentar ilusões: o partido do internacionalismo revolucionário só poderá livrar os operários da influência corruptora da burocracia nacional se a vanguarda proletária internacional aparecer novamente, como força combatente na arena mundial.

Desde o início da guerra imperialista, e mais ainda desde a Revolução de Outubro, o Partido Bolchevique foi a direção da luta revolucionária mundial. Hoje perdeu totalmente essa posição. Não nos referimos apenas à caricatura oficial do partido. As condições sumamente difíceis em que trabalham os bolcheviques leninistas russos excluem a possibilidade de que venham a ter um papel dirigente a escala internacional. Mais ainda, na URSS o grupo da Oposição de Esquerda só poderá transformar-se em um novo partido como conseqüência do êxito na formação e no crescimento da nova internacional. O centro de gravidade revolucionário deslocou-se definitivamente para o Ocidente, onde são imensamente maiores as possibilidades imediatas de construir partidos.

Sob a influência das trágicas experiências dos últimos anos, no proletariado de todos os países existem muitos elementos revolucionários que esperam um chamado claro e um estandarte sem mácula. É certo que as convulsões da Internacional Comunista jogaram, por toda parte, novos setores operários para a social democracia. Mas precisamente esse afluxo de massas alarmadas constitui o perigo mortal para o reformismo, que está sendo ultrapassado, desintegrando-se em frações e dando à luz, por toda parte, alas revolucionárias. Estas são as condições políticas imediatas que favorecem a nova internacional. Já foi assentada a pedra fundamental, a declaração de princípios das quatro organizações.

É indispensável, para obter êxitos maiores, fazer uma caracterização correta da situação mundial, incluindo o caráter de classe da União Soviética. Neste sentido, a nova internacional será posta à prova desde os primeiros dias de sua existência. Antes de estar em condições de reformar o estado soviético, deverá assumir a sua defesa.

Toda tendência política que, desesperançada, diz adeus à União Soviética, sob o pretexto de seu caráter "não-proletário", corre o risco de transformar-se em instrumento passivo do imperialismo. Evidentemente, nossa perspectiva não exclui a trágica possibilidade de que o primeiro estado operário, debilitado por sua burocracia, venha a cair sob os golpes mancomunados de seus inimigos internos e externos. Mas, se isto ocorrer, a pior das variantes possíveis, adquirirá enorme importância para o curso posterior da luta revolucionária, perguntar quem seriam os culpados da catástrofe. Sobre os internacionalistas revolucionários não deve cair nem sombra de culpa. Na hora do perigo mortal, terão que resistir até a última das trincheiras.

É quase certo que hoje a ruptura do equilibrio burocrático na URSS serviria às forças contra-revolucionárias. Contudo, se existisse uma internacional genuinamente revolucionária, a crise inevitável do regime estalinista abriria a possibilidade de um ressurgimento. Esta é nossa orientação básica.

A cada dia que passa, a política externa do Kremlin assesta novos golpes ao proletariado mundial. Distanciados das massas, os funcionários diplomáticos dirigidos por Stalin pisoteiam os mais elementares sentimentos revolucionários dos trabalhadores de todos os países, em detrimento, fundamentalmente, da própria União Soviética. Mas isto não é nada de novo. A política externa da burocracia é um complemento de sua política interna. Nós combatemos ambas. Mas travamos nossa luta da perspectiva da defesa do Estado operário.

Os funcionários da decadente Internacional Comunista continuam, nos vários países, jurando lealdade à União Soviética. Seria uma estupidez imperdoável construir qualquer coisa sobre esses juramentos. Para a maioria dessas pessoas, a proclamada "defesa" da URSS não é uma convicção e sim uma profissão. Não lutam pela ditadura do proletariado; seguem as pegadas da burocracia stalinista (ver, por exemplo, l’Humanité). No momento da crise, a "barbussizada" Internacional Comunista será incapaz de oferecer à União Soviética um apoio maior do que a oposição que ofereceu a Hitler. Com os internacionalistas revolucionários, é diferente. Vilmente perseguidos, há uma década, pela burocracia, chamam infatigavelmente os trabalhadores a defender a União Soviética.

No dia em que a nova internacional demonstrar aos operários russos, nos fatos e não só em palavras, que só ela se coloca na defesa do estado operário, a situação dos bolcheviques leninistas dentro da URSS mudará em vinte e quatro horas. A nova internacional chamará a burocracia stalinista a fazer frente-única contra o inimigo comum. E se nossa internacional representar uma força, a burocracia não poderá evitar a frente-única no momento do perigo. Que restará então das mentiras e calúnias de tantos anos?

Mesmo no caso de guerra a frente-única com a burocracia stalinista não será uma "santa aliança" ao estilo dos partidos burgueses e social-democratas, que durante a contenda imperialista suspenderam a crítica recíproca para melhor enganar o povo. Não; mesmo nessas circunstâncias manteremos nossa intransigência crítica frente ao centrismo burocrático, que não poderá ocultar sua incapacidade para dirigir uma verdadeira guerra revolucionária.

Tanto o problema da revolução mundial como o da União Soviética podem ser sintetizados em uma única e breve expressão: a Quarta Internacional.


Notas

1- Peronismo: movimento nacionalista burguês argentino, produto de um surto de crescimento econômico dos capitalistas nativos, devido à queda das relações comerciais com a Inglaterra durante a II Guerra. Seu dirigente, o Cel. Juán Domingos Perón, Ministro do Trabalho em 1943 começa a ganhar força, impulsionado por um golpe militar e por uma política populista que o leva a controlar a principal central sindical do país, a CGT. Fundou o Partido Justicialista, governou o país entre 46 e 55, e novamente entre 73-74. Menem é do PJ e o peronismo dirige o as principais organizações de massa argentinas até hoje.


Notas

1- Nota de Leon Trotsky: Os Sagazes brandleristas norte-americanos (o grupo de Lovestone) complicam a questão: para eles, a política econômica do stalinismo é impecável, mas o regime político da URSS é ruim, já que não há democracia. Não passa pela cabeça desses teóricos perguntar-se por que Stalin liquida a democracia, se sua política econômica é correta e tem êxito? Será por temer que a democracia proletária permita ao partido e a classe operária expressar muito mais ativa e violentamente o seu entusiasmo pela política econômica?

2- (N.L.T): Quem se interessar – se houver alguém – que se informe por sua conta própria sobre a "plataforma" dos "democratas (!) comunistas". Do ponto de vista dos fundamentos do marxismo, é difícil conceber documento mais repleto de charlatanice.

3- (N.L.T): Desolada com as "infrutíferas" experiências da ditadura do proletariado, Simone Weil encontrou alívio numa nova vocação: a defesa de sua personalidade contra a sociedade. A desgastada fórmula do liberalismo, revitalizada por uma barata exaltação anarquista! Dá o que pensar: Simone Weil refere-se, altaneira, às nossas "ilusões". Ela e os que são como ela precisam de anos de tenaz perseverança para conseguirem se libertar dos demais reacionários preconceitos da baixa classe média. Muito adequadamente, suas novas posições encontram abrigo numa publicação que leva o nome, evidentemente irônico, "La Révolution Prolétarienne". Essa publicação de Louzon é ideal para os nostálgicos da revolução e os rendeiros da política, que vivem dos dividendos de seu capital de recordações, e para os filósofos pretensiosos que talvez venham a aderir à revolução... depois que esta tiver sido realizada.

4- (N.L.T): Esse profeta acusa os bolcheviques leninistas russos de falta de audácia revolucionária. Confundindo, bem ao estilo austro-marxista, a revolução com a contra-revolução e o retorno à democracia burguesa com a preservação da ditadura proletária, Laurat dá lições a Rokovski sobre a luta revolucionária. Esse mesmo senhor considera Lenin um "teórico medíocre". Não é de admirar! Lenin, que formulou da maneira mais simples as mais complexas conclusões teóricas, não pode superar esse pretensioso filisteu que nos despeja, com ares cabalísticos, suas pobres e tediosas generalizações. Uma boa inscrição para seu cartão de visitas: "Lucien Laurat: por vocação, teórico e estrategista de reserva da revolução proletária... na Rússia; por profissão, assistente de Léon Blum". É uma inscrição meio longa, mas correta. Dizem que esse teórico conta com partidários entre a juventude. Pobre juventude!

5- (N.L.T): Isto não se aplica às organizações que romperam com a social-democracia há relativamente pouco tempo, ou que tiveram uma evolução particular (como o Partido Socialista Revolucionário da Holanda), e que naturalmente se recusaram a unir sua sorte à da Internacional Comunista em sua época de decadência. As melhores dessas organizações estão adotando as bandeiras da nova internacional. Outras a seguirão.