Emiliano Fernandez
Um fato ocorrido no dia 04 de outubro aponta para uma nova
fase da guerra pela audiência da TV aberta brasileira: o então líder nas
pesquisas eleitorais, Jair Bolsonaro (PSL), alegou restrições médicas para se
ausentar do debate entre os presidenciáveis (tradicional e concorrido encontro do
calendário eleitoral brasileiro), transmitido pela Rede Globo de Televisão, às vésperas
do primeiro turno. O debate transformou-se numa tradição desde a
redemocratização, reunindo os principais candidatos ao Palácio do Planalto.
Ao mesmo tempo que os postulantes à comandar o Brasil por
quatro anos (2019 a 2022) expunham ideias, propostas e se “engalfinhavam” para
obter o reconhecimento do eleitor.
Ou seja, enquanto alguns debatem ideias, o capitão apenas
aproveita uma “amistosa” conversa entre amigos e expões suas “ideias”.
Mesmo não tendo sido “liberado pelos médicos”, Bolsonaro foi
“agraciado” com uma entrevista exclusiva na Rede Record – a vice-líder na
guerra pela audiência da TV aberta de Pindorama (a RecordTV tem 14 emissoras e
87 retransmissoras).
E a liderança na audiência significa um bocado de recursos.
Só para que o prezado leitor compreenda, segundo dados divulgados pelo instituto
Kantar Ibope Media, o mercado publicitário da TV aberta movimentou um bolo de
R$ 71,9 bilhões, em 2017 (valor maior que o PIB de dez estados brasileiros).
Mas não é só dinheiro. Poder também vale quando o assunto é
televisão aberta no Brasil.
Por que TV é poder no
Brasil?
Historicamente algumas características do sistema de mídia
(jornais, rádios, TVs e, mais recentemente, portais de internet) permanecem
imutáveis: o monopólio familiar e a propriedade cruzada nos meios de
comunicação de massa no Brasil, a baixíssima diversidade do ponto de vista
político e o viés conservador. Há também uma constatação para a falta de
informação aprofundada de grande parte da população brasileira: a baixa
circulação dos jornais e o escasso número de leitores e, como consequência, no
campo da grande imprensa, um jornalismo orientado prioritariamente para as
elites e permeável à influência dos “públicos fortes”.
Não se pode esquecer o surgimento tardio da imprensa e dos
jornais comerciais no Brasil e a centralidade e hegemonia da televisão no
sistema de mídia. Some-se a tudo isto, no campo político, os ciclos
autoritários, o retorno relativamente recente da democracia e da liberdade de
imprensa e a atual presença de um pluralismo polarizado (moderado) e teremos um
quadro que une o sistema de mídia e o sistema político.
O jornalismo político burguês, no que pese seu papel teórico
seja o de mediar, particularmente nos períodos eleitorais, os posicionamentos
dos partidos e candidatos, “baseia-se em modelos propostos por Hallim e Mancini
(2004) e construídos a partir da análise de algumas dimensões consideradas
críticas para definir as características desses sistemas de mídia. Para
caracterizar um sistema de mídia os autores definiram quatro dimensões
analíticas: mercado de mídia, paralelismo político, desenvolvimento do
jornalismo profissional e o grau e a natureza da intervenção estatal no campo
da comunicação. A primeira dimensão está relacionada ao desenvolvimento forte
ou fraco da mídia de massa no mercado de informação; a segunda, à natureza da
relação entre a imprensa, governos, ideologias e partidos; a terceira, ao grau
de profissionalismo do jornalismo e, finalmente, a última à capacidade de
intervenção e regulamentação do Estado no setor das comunicações.” (AZEVEDO,
2006)
A emissora, líder em audiência, foi a responsável por dar
suporte ao golpe militar-civil em 1964. A empresa dirigida por Roberto Marinho,
atuou ao lado de tradicionais empresas do ramo como a Folha da Manhã (atual
Folha de S. Paulo) e o Estado de S. Paulo, Diários Associados e outros,
figurando como artífices do golpe à democracia, ocorrido naquele 31 de março.
Em contrapartida ao apoio, e o empenho de Roberto Marinho,
que publicou um editorial enaltecendo o golpe, os militares fizeram vista
grossa à legislação e a Globo recebeu um vultoso aporte financeiro do grupo
midiático norte-americano Time-Life, mesmo isso não sendo permitido pela
legislação.
A Globo se transformou, criou uma grade de programação
eficiente, versátil e apostou no binômio jornalismo de cabresto (guiado e
permitido pelo regime de exceção) e uma teledramaturgia bem construída, e
depois, transformou-se numa referência mundial.
Recursos estatais (de propaganda) não faltaram à Globo. Já a Record é uma das mais antigas TVs do Brasil. Completou
em 2018, 65 anos de existência. Criada pelo empresário Paulo Machado de
Carvalho, em 1953, foi líder de audiência, reconhecida por promover os
principais festivais de música do Brasil nos anos 1960. No início dos anos 1970
começa sua derrocada. Em 1989, com dívidas de US$ 20 milhões, e faturamento de
apenas dois milhões de dólares, a Record sai das mãos dos Machado de Carvalho e
Silvio Santos (sócio da emissora à época) e passa às mãos do “religioso” Edir
Macedo.
Com altos investimentos e reformulações da programação, a
Record passa a adquirir emissoras e retransmissoras que a colocam em segundo
lugar no Século XXI, ultrapassando o SBT, de Silvio Santos.
O pulo do gato para a
liderança
Mesmo com muito dinheiro oriundo da IURD, a RecordTV (novo
nome da cabeça da rede em 2015), a emissora não alcança a tão almejada
liderança. No entanto, sua estratégia mudou a partir de 2010, quando o sobrinho
de Edir Macedo passa a condição de senador pelo Rio de Janeiro, sede da sua
principal rival: a Rede Globo. Marcelo Crivella aproveitou o apoio do PRB a
Lula e se lançou com Lindberg Farias (PT). Elegeu-se. E mais recentemente, em
2016, foi o escolhido para ser o prefeito do Rio de Janeiro.
A IURD cresceu não apenas por seus próprios meios, mas
também graças a dois equívocos profundos do PT. O primeiro foi devido ao aburguesamento
do partido e sua cooptação pelo Estado capitalista, ele abandono do trabalho de
base nos bairros proletários que herdou das Comunidades Eclesiais de Base e era
forte até a década de 1980. O segundo erro foi o de não criar um forte aparato
midiático próprio, sob a ilusão de que a trégua com a rede Globo e outras corporações,
subsidiada por gordos patrocínios estatais fosse eterno. Agora, paga caro pelos
dois erros.
O PRB tem dado apoio a Jair Bolsonaro. Mas é na RecordTV
onde ele tem se apresentado como um “político moderado”. Os rompantes de
ditador, que normalmente o acometem nas entrevistas para rádio, ou discursos
inflamados para seus fiéis seguidores, são contrapontos perto dos momentos nos
quais o capitão reformado do Exército Brasileiro atende às câmeras e usa os
microfones do braço midiático da IURD.
Globo e Record, uma
guerra que já dura quase três décadas
A guerra entre Globo e Record teve início com a prisão de Edir
Macedo em 1992, acusado de charlatanismo, curandeirismo e estelionato. Macedo acusou a Igreja Católica e a Globo de estarem por trás da prisão. O que é verdade
porque ele não é o único que pratica isso entre os religiosos e porque os que
ele acusa de estarem por trás da prisão, também praticam o mesmo, cada um a seu
modo.
A guerra teve várias batalhas. A eleição de 2018 é mais uma
delas.
Doze anos após a prisão de Macedo, em 2004, a emissora do
neopentecostalista soltou a farpa, gerado pelo slogan “A caminho da liderança”:
provocação à Globo, que, em represália, faz denúncias repetidas vezes sobre a
ligação entre o bispo e sua forma “pouco ortodoxa” de professar a fé. A guerra
pela audiência, por dinheiro de publicidade e poder, pode ter um novo capítulo
caso Bolsonaro vença.
O braço político do bispo dono da RecorTV é o Partido
Republicano Brasileiro, criado em 2005, quando já nasceu com dna governista. Nascido para dar suporte
ao governo Lula, o PRB seguiu firme ao lado de Lula e, na sequência, elegeu e
reelegeu Dilma. Mas em 2016, foi o primeiro a pular fora do barco da
ex-comandante reeleita.
O capitão reformado do Exército e dublê de parlamentar (dois
projetos aprovados em 28 anos de representação como deputado federal na Câmara
dos Deputados) já adiantou onde estará, a partir do momento que exercer seu
poder, em entrevista a um repórter do jornal O Globo, em dezembro de 2017. Ele
falou claramente: reduzirá a parcela generosa da Globo na fatia, que hoje é de
aproximadamente 80% do valor investido pela República, em publicidade oficial.
Ou seja: a Globo vem sendo ameaçada pela onda reacionária
que ela própria alimentou nos últimos anos contra o PT e como parte da escalada
golpista em geral. Agora a Globo pode ser superada durante a instalação de uma
nova ditadura a qual a RecordTV deixou claro ter embarcado de carona no
impeachment e estreitou seus vínculos ao apoiar Bolsonaro no meio da campanha
eleitoral.
A proximidade com Bolsonaro pode ser o pulo do gato de Edir
Macedo. A Record já ocupa o segundo lugar dentre as emissoras em audiência e em
verbas federais. E juntamente com outras igrejas neopetenconstais controlam a
prefeitura e estão prestes a fazer o mesmo no Estado do Rio de Janeiro, o
segundo maior Estado do país e sede da Rede Globo.
A eleição de Bolsonaro faz parte da aposta de Macedo para se
converter no momento da ultrapassagem sobre a Globo. Macedo deu a propulsão que
animou Bolsonaro no domingo após o “#Ele não!” de 29 de setembro, ao
transformar os púlpitos de todas as igrejas de sua IURD em palanque de defesa
do capitão da caverna.
Mas não é só midiaticamente que os neopetenconstais ameaçam
ultrapassar a Globo. Essa disputa é mais profunda do que por mera audiência.
Trata-se da disputa ideológica pelo controle da população entre a doutrinação
pós-moderna e a doutrinação fundamentalista. O neopetencostalismo é ainda mais
funcional, pelo conformismo de sua religião da propriedade, a exploração do
trabalho no novo ciclo de acumulação neocolonial e escravagista que o padrão
global de idiotização.
A mídia é um espaço de disputa dentro da democracia
burguesa, com todas as determinações que essa democracia possui em um país
atrasado e subjugado como o Brasil, ou pode ser um espaço onde se prega a
conformação com o destino traçado por “Deus” e por um mito que o represente na
presidência do país.
Referências bibliográficas
AZEVEDO, Fernando
Antônio. Mídia e democracia no Brasil:
relações entre o sistema de mídia e o sistema político. Opin. Publica
[online]. 2006, vol.12, n.1, pp.88-113.