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segunda-feira, 9 de julho de 2018

FUTEBOL E NACIONALISMO

A Esquerda Canarinho

Mário Maestri, historiador


“O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, torna-se o próprio símbolo da nação”. Hobsbawm, Nações e nacionalismo, p. 171.

No Brasil, a cada quatro anos, discute-se na esquerda a legalidade de “torcer” pela “seleção nacional”. Debate acirrado em 2018 pelo ativismo da ordem golpista contra os trabalhadores e pela a acirrada ofensiva nacionalista-conservadora, com a participação de alta oficialidade do exército. A própria população, ferida e desconfiada, enfrentou a Copa do Mundo com um retraimento inusitado. O importante para a esquerda, mais do que discutir se “torcer” ou “não torcer”, trata-se de “compreender” o sentido do uso do futebol como meio de conformação das consciências.

A partir de fins do século 19, esse esporte inglês difundiu-se ao largo do dito mundo Ocidental, popularizando-se sobretudo por ser jogo comunitário e popular. Ele exigia apenas duas equipes e terreno baldio. Podia-se jogar de pé no chão e sem camisa e não era necessário treinamento algum. Bastava chutar a bola, o único equipamento imprescindível, responsável pela introdução da questão social nas peladas. O “dono da bola” foi sempre o menininho rico, branco, pé de chumbo!

Muito logo, os times de bairros, fábricas, escritórios, escolas, tropas militares travaram disputas avulsas assistidas pelas respectivas torcidas. O esporte era bom de jogar e bonito espetáculo, ao qual se acresceria com o passar dos anos fortes significados ideológicos. Vieram os campeonatos, de ligas variadas. As disputas entre clubes na mesma nação generalizaram-se nos países em que o esporte se difundiu. Em 1872, travou-se a primeira partida entre duas nações: a Inglaterra, metrópole, a Escócia, semi-colônia, de sentido político claro.

O aproveitamento político do futebol antecedeu a sua exploração econômica.

Nos mesmos anos, o anarquismo e o socialismo revolucionários mobilizavam-se contra os exploradores nacionais e estrangeiros, defendendo a união mundial dos oprimidos - “Nem deus, nem pátria, nem patrão”. Em 1864, a Primeira Internacional nasceu sob a consigna: “Operários de todo o mundo, Uni-vos!” Nesses anos, o futebol se desenvolvia na Inglaterra como esporte operário e popular.

Em 1914, partidos socialistas europeus lançaram o internacionalismo pela janela e mandaram os trabalhadores, de fuzil ao ombro, partir como ovelhas para o matadouro, cantando hinos nacionais, atrás das bandeiras pátrias. A guerra interimperialista seria impossível sem o consenso nacional e o arrasamento do internacionalismo operário.

Em 1930, travou-se a primeira Copa Mundial - o futebol popularizara-se na Europa, América Latina e antigas colônias inglesas. Desde então, a cada quatro anos, os oprimidos de cada país torceriam pelas seleções nacionais, contra os oprimidos das nações adversárias. Uns e outros em comunhão com as respectivas classes dominantes, vestiriam as cores pátrias variadas.

Em 1930, conformavam-se os Estados-nação latino-americanos, com a industrialização na Argentina, Brasil, Chile, México, etc. Na República Velha [1889-1930], era-se sobretudo paulista, mineiro, pernambucano, etc. e quase nada brasileiro. No Brasil pós-federalista, necessitava-se construir um Estado nacional, para a produção industrial do Rio de Janeiro e São Paulo. O futebol se mostrou arma excelente na construção-invenção da “identidade nacional” brasileira.

Em 1937, a ludização do confronto entre as nações deu lugar à hecatombe da guerra das nações imperialistas pela hegemonia mundial. Todos novamente atrás das cores nacionais, em defesa da pátria-mãe.

A função política do futebol impediu a organização de campeonatos emocionantes entre os estados, regiões, nacionalidades, religiões de uma mesma nação. Valões contra flamengos. Bretões contra normandos. Bascos contra castelhanos. Vênetos contra sicilianos. No Brasil, cariocas contra mineiros. Briosos jogadores gaúchos contra os pernas-de-pau paulistas. Neo-pentecostais contra seleção de batuqueiros, espíritas e católicos. O objetivo era construir sentimento patriótico entre explorados e exploradores e não enfraquecer o espaço nacional de dominação.

O tsunami neoliberal que varreu a humanidade fragilizou o mundo do trabalho e fortaleceu a dominação também ideológica do capital, através do. No Brasil, os objetivos perseguidos foram fortemente alcançados. Os ricos partem para ver os jogos “sur place” enquanto os desempregados e mal-empregados assistem nos botecos da esquina. Explorados torcem pela bandeira, vestem a camisa, cantam o hino, identificam-se com o Estado das classes dominantes suas algozes. Seus heróis são jogadores histriônicos, de penteados exóticos, conservadores até a medula dos ossos e podríssimo de ricos.

Mais ainda, amplos segmentos da esquerda juram, de pés juntos, que, se estivessem vivos, enquanto ele torcem pelo Brasil, Marx e Engels torceriam pela Alemanha; Rosa Luxemburgo, pela Polônia; Fidel, por Cuba; Guevara, pela Argentina; Lenin, pela Rússia; Trotsky, pela Ucrânia e Stalin ameaçaria de morte a seleção da Geórgia se não vencesse! Afinal, é apenas um jogo. Todos agitando suas respectivas bandeiras nacionais. Milhares de socialistas entregam-se, acreditam que só por algumas semanas, ao prazer de se fundir na comunidade de “valores nacionais”. Abandonam o pesado fardo de navegar de costas contra a corrente, de lutar para que se compreenda plenamente os sentidos profundos da manipulação desse grande e belo espetáculo.