quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

PORQUE OS SINOS DOBRAM POR MANDELA

O regime capitalista pós-apartheid
sob a crítica da economia política marxista
Humberto Rodrigues


A África do Sul de Nelson Mandela,
renda e população por grupo racial, 1910 - 2010
Fonte: The Economist
Em 1985, David Cameron, o atual primeiro ministro conservador inglês, fazia parte da direção executiva da Federation of Conservative Students (FCS), a juventude do Partido Conservador, então sob o governo de Margaret Thatcher que, ao lado do governo de Israel, era a maior defensora do apartheid fora do governo sul africano. Sob a direção de Cameron, a FEC elaborou o cartaz que pregava: "Enforquem Nelson Mandela e todos os terroristas do CNA: eles são sanguinários". Ainda em 1989, quando Cameron estava trabalhando para o Departamento de Investigações do Partido Conservador ele foi a África do Sul com todas suas despesas pagas pelo regime do apartheid. Hoje, o primeiro ministro inglês diz que "Nelson Mandela foi um herói do nosso tempo."

A ultra-hipocrisia de Cameron é compartilhada pelo conjunto do imperialismo que apoiou ao apartheid sul africano assim como segue hoje apoiando ao sionismo israelense, as mais recentes encarnações do nazismo por regimes de Estado. Os funerais do ex-“terrorista” que deveria ser “enforcado” tornaram-se a mais importante homenagem política feita pela burguesia mundial em 2013, da qual participaram mais de 90 dos principais líderes de nações burguesas.

Obama, Cameron e Cia se apoiam em uma visão parcial acerca de Mandela comungada por milhões de pessoas simples que também prestam homenagem ao líder negro neste momento. A visão de que o fim do apartheid como regime de Estado foi produto unicamente do sacrifício de muitos lutadores negros, incluindo crianças, e das campanhas internacionais de solidariedade, greves e boicotes contra o apartheid. Estes elementos da luta de classes pressionaram pelo fim do apartheid, mas é ingenuidade não perceber que em um dado momento da luta o imperialismo e a própria burguesia branca compreenderam que era preciso ceder alguns anéis para não perder os dedos e acabar levando a melhor com essa concessão. Como provaremos abaixo, o fim do apartheid foi uma medida necessária e lucrativa para a burguesia racista branca sul africana e para o grande capital no mundo todo.

Muito proselitismo se fala sobre Mandela e sobre o fim do apartheid, mas pouco se fala da transição burguesa na era Mandela sob o ponto de vista da economia política marxista, quando a exploração de classe foi acentuada. Para isto, nos valemos dos estudos de Michael Roberts, um economista marxista, autor do livro The Great Recession. Profit cycles, economic crisis – A Marxist View (A grande recessão. Ciclos de lucro, crise econômica – Uma visão marxista). http://thenextrecession.wordpress.com/2013/12/06/mandelas-economic-legacy/

A RESISTÊNCIA PROLETÁRIA, CRISE ECONÔMICA
E A LUTA NACIONAL DA NAMÍBIA ARRUINAM O APARTHEID

Para gente como Cameron e mais ainda para a elite capitalista racista sul africana não foi uma tarefa fácil rever os conceitos e deixar de considerar Mandela e a direção do CNA como “terroristas” que deveriam ser enforcados e permitir a ascensão pela via da democracia burguesa de um presidente negro. Foi uma revisão inevitável e necessária. Por quê? Roberts fornece dados que nos ajuda a compreender. A economia capitalista da África do Sul estava de joelhos, não só por causa do boicote, mas porque a produtividade da mão de obra negra nas minas e fábricas despencou. Assim, os investimento na indústria e os investimento estrangeiros caiam drasticamente. Por isso a rentabilidade do capital atingiu seu menor patamar desde a II Guerra Mundial, agravada pela recessão global do início dos anos 1980.

Para além dos registros de Roberts, Leon Carlos da TMB argentina nos chama a atenção para um outro elemento que se soma aos dois primeiros. Desde a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial, a Namíbia, até então ocupada pela Alemanha passa a ser dominada pela Liga das Nações (hoje ONU) que repassa o controle militar do país para a elite branca da África do Sul que por sua vez estende o apartheid para a Namíbia. A vanguarda da resistência anti-apartheid na Nambíbia cria em 1966, a SWAPO (South-West Africa People's Organisation), um movimento independentista, que lançou uma guerra de guerrilha contra as forças ocupantes, forçando que em 1988 o governo sul-africano termine sua administração do território. A independência da Namíbia da África do Sul em 1990 agrava a crise econômica sul africana e ao combinar a luta nacional contra a luta anti-racista serve de exemplo para a luta contra o regime segregacionista na própria África do Sul. A intervenção militar sul africana na Namíbia e em Angola é conduzida ao esgotamento quando os mercenários da UNITA, apoiados pelo apartheid, pelo imperialismo estadunidense e pela burocracia chinesa são derrotados pelo MPLA, apoiado por Cuba e pela URSS.

Portanto, o colapso do ciclo de acumulação do capital apoiado no apartheid também está estreitamente vinculado a retirada das tropas sul africanas da Namíbia e o esgotamento da Africa do Sul como gendarme do imperialismo na parte meridional do continente (tarefa que o governo Mandela retoma em 1998, já com uma África do Sul revigorada, invadindo militarmente a Lesoto http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/179120.stm). A vitória do proletariado da Namíbia favorece a resistência do proletariado sul africano nas minas e nas fábricas.

África do Sul: a recuperação da taxa de lucro
capitalista após a eleição de Mandela em 1994
Ao contrário de outras economias capitalistas, a África do Sul perdeu qualquer margem para recuperar a lucratividade da exploração da força de trabalho negra. Para a burguesia era preciso mudar radicalmente de tática.

O presidente Frederik de Klerk reverteu décadas de política anterior e optou por liberar Mandela e impulsionar um governo de maioria negra que poderia restaurar a disciplina do trabalho e recuperar a taxa de lucro. Por encontrar esta saída conciliatória em favor do parasitismo imperialista sobre a África do Sul De Klerk e Mandela foram premiados com o Nobel da Paz e Mandela tornado presidente com 76 anos de idade.

O governo Mandela deu-se início a um novo ciclo de acumulação capitalista onde a rentabilidade aumentou fabulosamente no primeiro governo Mandela, a taxa de exploração da força de trabalho disparou. Note-se que nos gráficos "África do Sul: taxa de lucro (%), rate of profit"; e "África do Sul: taxa de exploração (%), "rate of exploitation" que abordam o longo período de 1963 a 2007 a maior queda da taxa de lucros e da exploração da força de trabalho é no início dos anos 90, queda que logo se recupera abruptamente a partir da eleição de Mandela em 1994.

África do Sul: taxa de exploração (%)
Sem interrupção no aumento das taxas de exploração
sob os mandatos da maioria negra.
A política de Mandela está londe de ser recebida como a salvação dos negros africanos como a grande mídia vem apregoando nos últimos dias. De onde mais se disparam as críticas a gestão de Mandela é do interior do próprio CNA, onde “existia a percepção que o governo Mandela foi uma oportunidade perdida para se proceder a uma maior distribuição de renda; Mandela estaria mais preocupado com a "reconciliação" do que com reformas.” http://pt.wikipedia.org/wiki/Nelson_Mandela

Mais dura ainda foi a crítica realizada pela ex-esposa de Mandela, Winnie. Em 2010 Winnie “'Vocês todos devem perceber que Mandela não foi o único homem que sofreu. Havia muitos outros, centenas de pessoas que definhava na prisão e morreram. Mandela foi para a prisão e ele foi lá como um jovem revolucionário, mas olha o que saiu. Mandela nos decepcionou. Ele realizou um mau negócio para os negros. Economicamente ainda estamos do lado de fora. A economia é muito mais 'branca'. Eu não posso perdoá-lo por ter ido a receber o Nobel com seu carcereiro de Klerk.” Winnie também disparou contra um dos principais testas de ferro de Mandela, o arcebismo Desmond Tuto, “Ela disse que o arcebispo Desmond Tutu foi um cretino e afirmou que os sacrifícios de Steve Biko e outros na luta contra o apartheid estavam sendo esquecidas.” Winnie foi perseguida por defender a punição dos colaboradores do apartheid com 'Necklacing' - colocando pneus em chamas em torno de seus pescoços.

Aos 73 anos ela disse que seu ex-marido havia se tornado uma "fundação corporativa” com a finalidade de arrecadar dinheiro para o CNA. Para ela, o ex-marido decepcionara os negros sul-africanos, mantendo-os na pobreza e fazendo os brancos ainda mais ricos. http://www.dailymail.co.uk/news/article-1256425/Nelson-Mandelas-ex-wife-accuses-President-betraying-blacks-South-Africa.html#ixzz2nEQuMWl5

Como parte da dinâmica dos ciclos capitalistas, agora é justamente a superprodução de mercadorias e capitais obtida nos governos do CNA que vem provocando a redução na taxa de lucros e o declínio do atual ciclo de acumulação.

O REGIME PÓS-APARTHEID DO CNA, DINAMO DA ECONOMIA
CAPITALISTA SUL AFRICANA E DA MISÉRIA DAS MASSAS NEGRAS

O dinamismo no aumento da lucratividade perdeu força no início dos anos 2000, quando a composição orgânica do capital aumentou de forma acentuada, através do crescimento da mecanização, embora isso ainda causasse certo aumento na taxa de exploração. A indústria sul-africana agora está em dificuldades, o desemprego e o crime permanecem nos mais altos níveis globais e o crescimento econômico naufraga.

A África do Sul sob comando de Mandela e depois Thabo Mbeki viu alguma melhora nas verdadeiramente horríveis condições de vida da maioria negra, em saneamento, habitação, eletricidade, educação, saúde etc., dando fim ao cruel e autoritário controle de mobilidade e à desigualdade total do regime do apartheid. Mas a África do Sul ainda tem a maior desigualdade de renda e saúde do mundo e, desde que os capitalistas negros aderiram aos brancos no jogo da economia capitalista, a desigualdade nunca foi tão grande. A despeito de professar o socialismo, o CNA nunca caminhou rumo à substituição do modo capitalista de produção pela propriedade comum, nem mesmo no que se refere à indústria mineral.

Tal como a OCDE colocou em seu relatório sobre desigualdade de renda em economias emergentes: “em um extremo, um forte crescimento na década passada esteve de mãos dadas com o declínio da desigualdade de renda em dois países (Brasil e Indonésia); no outro extremo, quatro países (China, Índia, Rússia e África do Sul) registraram grandes aumentos nos níveis de desigualdade durante o mesmo período, mesmo quando suas economias passaram por forte expansão.

A minúscula minoria branca e rica manteve-se muito longe de ser afetada com o final do regime de segregação racial. Outra vez, de acordo com a OCDE: “esse é um desafio particularmente sério para a África do Sul, onde a divisão geográfica reflete a desigualdade entre as raças. A renda real aumentou para todos os grupos depois do fim do apartheid [refletindo o fenômeno da pauperização relativa, onde o aumento dos salários ocorre de forma bem inferior ao aumento da riqueza dos patrões]. Sob qualquer critério de pobreza, os negros sul-africanos são muito mais pobres do que mestiços, que são bem mais pobres do que indianos e asiáticos, por sua vez mais pobres que os brancos”.

Agora, os ricos brancos receberam a companhia dos ricos negros que dominam os negócios e exercem enorme influência sobre as lideranças negras no comando do Congresso Nacional Africano (CNA). O CNA expressa as fortes divisões entre a maioria da classe trabalhadora negra e a pequena classe dominante negra que se desenvolveu. Essas fissuras aparecem cada vez mais, ainda sem uma ruptura decisiva (como vimos recentemente no fuzilamento de mineiros em greve pela polícia, sob um governo negro). Sobre isso, recomendamos ler o artigo da LC - AFRICA DO SUL: A luta pela libertação do proletariado africano e o verdadeiro legado de Mandela.

O RACISMO CAPITALISTA SEGUE FIRME
SOB O GOVERNO DE MANDELA E DO CNA

Outra ilusão é acreditar que a transferência da gestão do capitalismo sul africano para mãos negras possa assegurar o fim do racismo contra aqueles que não fazem parte da nova elite burguesa negra. Neste sentido, o racismo sul africano que até meados dos anos 90 era uma política de Estado, travestiu-se, na era Mandela, do racismo brasileiro dissimulado de “democracia racial”. Não é por demais relembrar os ensinamentos de Malcolm X de que não existe capitalismo sem racismo.

Hoje no país, a renda média dos negros representam um sexto da dos brancos sul-africanos, ou seja, o racismo lá ainda é muito pior do que no Brasil, onde a renda do trabalhador negro é, em média, 53% da do branco. "‘Nós ainda temos desemprego racial, pobreza racial e desigualdade racial’, disse Sidumo Dlamini, presidente do Congresso de Sindicatos Comerciais do país, com 2,2 milhões de membros. ‘Nosso país ainda está nas mãos dos brancos...’ O índice de Gini, que mede a desigualdade, subiu de 0,59 em 1993 para 0,63 em 2009, o que mantém a sociedade sul-africana como uma das mais desiguais do mundo. A pobreza continua predominante entre os sul-africanos negros, que representam 79% da população de 53 milhões. Líderes sindicais culpam as diretrizes econômicas de 1996, que Mandela classificou como "inegociáveis", por perpetuar a desigualdade da era do apartheid.” (Mike Cohen, Legado econômico de Mandela está ameaçado, Bloomberg ,10/12/2013). A taxa de desemprego África do Sul subiu de 15,6% em 1995 para 25,6% em 2000. Quase um em cada três negros está desempregado, em comparação com um em cada 20 brancos. Relatórios da ONU costumam colocar cidades da África do Sul entre as mais desiguais do mundo.

Este é o legado de Mandela, de dar uma saída burguesa negra para a falência do apartheid. A verdadeira superação do secular parasitismo imperialista sobre o continente negro está na construção de um partido operário revolucionário negro que conduza conjunto da insatisfação crescente das massas secularmente exploradas em direção à luta pela expropriação revolucionária do imperialismo e seus títeres, dos senhores da guerra tribais mercenários e dos novos ricos negros pelo proletariado negro e edificação de uma Federação Socialista das repúblicas soviéticas africanas.