quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A dialética da nova guerra fria

Rússia e China estreitam laços de defesa mútua contra o imperialismo

Leon Carlos e Humberto Rodrigues


No dia 15 de dezembro de 2021, o presidente russo, Vladimir Putin, e seu homólogo chinês, Xi Jinping, concordaram em criar uma estrutura financeira independente, algo como um mercado comum blindado da influência internacional, sobretudo, da interferência dos EUA. Essa estrutura nasce da articulação entre duas outras enormes: 1) a Aliança Econômica Eurasiática, composta por Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, Armênia e Quirguistão; e 2) a "One Belt One Road" da China (Iniciativa Cinturão e Rota, ou BRI), também chamada de a Nova Rota da Seda. De fato não é uma estrada, como sugere o nome, mas o maior plano de investimentos em obras da história da humanidade, distribuído em 65 países. Quando foi lançado, em 2017, o projeto anunciou que seus custos seriam de US$ 4 trilhões, o que é quase 30 vezes o valor atualizado do Plano Marshall, que os EUA criaram para reconstruir a Europa após a 2a Guerra Mundial. (1)

"Atenção especial foi dada à necessidade de intensificar esforços para formar uma infraestrutura financeira independente para atender às operações comerciais entre a Rússia e a China. Para criar, quero dizer, uma estrutura que não possa ser influenciada por terceiros países " , disse Yuri Ushakov, assessor de Putin, citado por RIA Novosti. (Rússia e China concordam em criar uma estrutura financeira independente que não pode ser influenciada por outros países)

Tanto Putin quanto Xi Jinping defenderam o aumento da participação das moedas nacionais no comércio bilateral e defendem "ampliar a cooperação para garantir o acesso de investidores da Rússia e da China aos mercados de valores mobiliários de ambos os países", explicou o assessor presidencial.

O comércio bilateral entre os dois países nos primeiros três trimestres de 2021 chegou a US $ 100 bilhões pela primeira vez, e espera-se que esse número alcance um novo recorde até o final do ano.

Em março de 2021, China e a Rússia assinaram um memorando de entendimento sobre o estabelecimento conjunto de uma estação internacional de pesquisa científica na Lua. Em maio, começaram os trabalhos de construção das Unidades nº 7 e nº 8 da Central Nuclear de Tianwan e das Unidades nº 3 e 4 da Central Nuclear de Xudapu. É o maior projeto conjunto entre a China e a Rússia na área de energia nuclear até agora.

Na cúpula virtual, o 37° encontro entre os dois mandatários desde 2013, eles também se comprometeram a aprofundar a coordenação em questões candentes dentro de estruturas multilaterais, como o Conselho de Segurança da ONU, a Organização de Cooperação de Xangai e o mecanismo do BRICS e rechaçar a campanha da mídia de boicote contra os Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim em 2022. O presidente chinês assegurou:

"A China e Rússia nunca permitirão que nenhuma força externa interfira nos assuntos internos dos estados membros da Organização de Cooperação de Xangai (SCO),... China e a Rússia têm atuado como grandes países responsáveis, configurando-se como a espinha dorsal para a prática do verdadeiro multilateralismo e salvaguardando a justiça e a justiça internacionais." (Por que uma parceria estreita entre a China e a Rússia é boa para a estabilidade mundial)

 Putin declarou no início do encontro que as relações entre Moscou e Pequim são

"um verdadeiro exemplo de cooperação inter-estatal no século 21". “Foi criado um novo modelo de cooperação entre os nossos países, baseado, entre outras coisas, em fundamentos como a não intervenção nos assuntos internos e o respeito pelos interesses mútuos, a vontade de fazer da fronteira comum um cinturão de paz" (Putin declara que as relações entre a Rússia e a China são "um exemplo no século 21")

No que Xi Jimping retrucou:

“o mundo entrou num período de turbulências e grandes mudanças”, mas as relações russo-chinesas “mostraram uma sólida viabilidade e ganharam um novo fôlego”. (idem)

Na verdade, a criação de um núcleo alternativo de países a partir da China e Rússia é produto da crise de hegemonia do imperialismo dos EUA, que arrasta o mundo para turbulência e grandes mudanças. Essas mudança desafiam a compreensão dos que se limitam a interpretar o mundo pelas lentes da lógica formal. Deveria se supor que como Estados operários URSS e China criariam relações sólidas. Mas a história não obedece a essa lógica, mas a dialética.

Sob o controle das burocracias stalinistas e maoístas, as diferenças entre a China e a URSS chegaram até a confrontos armados diretos (a Batalha da Ilha Zhenbao, 1969) e indiretos (Vietnã e Camboja), com a China acusando a URSS de "social-imperialista" e respaldando o golpe de Pinochet. As contradições inter-burocráticas se fizeram maiores que as contradições externas entre os Estados operários e o imperialismo, o que, obviamente, foi muito bem explorado pelos EUA. Mas, a decadência do imperialismo abriu margem para que essas contradições entre China e Rússia fossem secundarizados em favor da resistência contra o inimigo comum. As contradições principais nas décadas de 50 a 70 se tornaram secundárias no século XXI. A pressão imperialista forçou a Rússia e China a darem um salto de qualidade em suas relações inter-burguesas de defesa mútua contra sanções e das transações.

Sob a pressão imperialista, China e Rússia avançam em sua autonomização em relação aos marcos financeiros controlados pelas potências imperialistas. Já não se trata apenas desdolarização de seu mercado comum, que em si já é bastante temível pelo imperialismo e representa um obstáculo à exportação de capital inflacionário dos Estados Unidos em relação a esses países, como faz com o restante do planeta. Sob a ofensiva dos blocos imperialistas contra a China no Indo-Pacífico e contra a Rússia no Leste Europeu (Ucrânia, Bielorússia,...) provoca o efeito de responder com maior coesão por parte do pólo russo-chinês, que é a dialética em questão.

No Leste Europeu, os instrumentos do imperialismo a oprimir a Rússia são o bloco anglo-saxão + o bloco europeu. No Oceano Pacífico, os instrumentos contra a China são o bloco anglo-saxão + o Japão (imperialismo colonizado militarmente desde as bombas de Hiroshima e Nagasaki) + outras semicolônias como a Coréia do Sul, etc. As funções especiais e lugares nessa disputa ocupados pela Ucrânia e Polônia, na Europa Oriental, e pela Índia são mais complexos e não as desenvolveremos aqui. Portanto, há uma ampla unidade das potências imperialistas contra o pólo eurasiático. Além desses dois pontos nevrálgicos na Europa e no Pacífico, deve-se considerar outro, na Ásia Ocidental, contra o Irã, onde a frente imperialista é composta pelo bloco anglo-saxônico-sionista, pela Arábia Saudita e apoiado pela União Européia.

É claro que UNIDADE de interesses comuns contra os adversários China, Rússia e Irã, não implica IDENTIDADE de interesses, portanto não negamos, mas enquadrarmos as contradições secundárias que existem entre as diferentes nações manipuladas pelo imperialismo. Por exemplo, para esclarecer as diferenças entre UNIDADE e IDENTIDADE de interesse - uma vez que há uma diferença de identidade, a unidade não exclui contradições secundárias - podemos mencionar Nord Stream 2 e o interesse da Alemanha pelo gás russo barato contra o bloqueio que deseja impor os EUA contra a Rússia e o AUKUS em contradição com o desenvolvimento da indústria de armas francesa. Sendo assim, a desigualdade na identidade de interesses entre as nações por vezes se choca contra a combinação estabelecida pela unidade.

É interessante que a pressão imperialista vem forçando uma reação relativamente progressiva da política diplomática chinesa, historicamente centrista, neutral, pragmática. Defendendo-se da guerra híbrida e das campanhas de propaganda de guerra que acusam a China de violar direitos humanos a diplomacia chinesa vem reagindo:


"A China condena as bárbaras intervenções militares dos Estados Unidos no Afeganistão, Iraque, Síria e outros países sob a bandeira da "democracia" e "direitos humanos", e apela à comunidade internacional para investigar a guerra crimes cometidos por militares dos EUA que mataram civis inocentes em todo o mundo, disse um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China. O porta-voz, Wang Wenbin, fez a declaração na entrevista coletiva diária de terça-feira solicitando respostas sobre relatos de elementos militares dos EUA envolvidos em um ataque de drones que deixou 10 civis mortos em Cabul, Afeganistão. "A atrocidade de matar civis pelas forças dos EUA no Afeganistão é inaceitável.", disse Wang. Enquanto os Estados Unidos falavam sobre "democracia" e "direitos humanos" na "cúpula da democracia", afegãos inocentes foram mortos pela mão armada de militares americanos e suas famílias não tinham onde reclamar. Essa é a cruel realidade que a "democracia" e os "direitos humanos" defendidos pelos Estados Unidos". A justiça pode demorar, mas não permanecerá eternamente ausente", disse Wang. o Porta-voz sublinhou que chegou ao fim a era em que os Estados Unidos agem de forma imprudente em todo o mundo sob o pretexto da chamada "democracia" e "direitos humanos" e que o crime dos militares dos EUA de assassinar civis inocentes em outros países não ficarão impunes." (China exige justiça para civis mortos por militares dos EUA: porta-voz)


Nesse processo de aquecimento da guerra fria existem várias esferas diferentes de lutas contra o capital. No plano internacional, existe a luta inter-estados onde, de um lado, existem estados oprimidos (países dependentes, semicolônias, estados operários) pelo grande capital imperialista, através de bloqueios e sanções que agravam as condições de vida da classe trabalhadora, e de outro lado, nações imperialistas comandando coalizões opressoras, os trabalhadores não podem se dar ao luxo de ficarem neutros. Precisam tomar o lado oposto ao do imperialismo estadunidense, hegemônico no mundo globalizado capitalista. A luta antiimperialista, através da Frente Única Antiimperialista (FUA), é a forma que assume a luta de classes na esfera internacional. Se o imperialismo sai vitorioso, se fortalece a dupla cadeia de exploração e opressão sobre as nações, povos e consequentemente trabalhadores dos países oprimidos. Se o imperialismo é derrotado, a luta de libertação nacional desperta a luta pela emancipação social. Ainda durante a primeira fase da luta antiimperialista, a derrota do grande opressor planetário anima a classe trabalhadora contra seus exploradores e opressores imediatos, nacionais e regionais. A revolução social se combinou com vários processos de libertação nacional após a segunda guerra mundial, inclusive na China, em Cuba e no Vietnã.


Na esfera nacional, da luta de classes não cessa. Ela continua na defesa dos interesses imediatos, econômicos, sindicais da população trabalhadora pela melhoria de suas condições de vida contra seus próprios capitalistas. Nesse processo contínuo, a classe adquire consciência dos limites, insuficiências e incapacidades crônicas de seus governantes burgueses de executarem suas próprias promessas de soberania e, sob a influência do comunismo, chega a conclusão de que a tomada revolucionária do poder político das mãos dos governantes dos países oprimidos, é a uma consequência necessária, um momento do processo da luta pela libertação nacional contra os grandes capitalistas dos países opressores. Como a história já comprovou, as classes dominantes nativas jamais protejerão suficientemente os países oprimidos dos ataques especulativos, invasões militares, bloqueios e sabotagens econômicas realizadas pelo imperialismo. Somente a revolução proletária pode efetivamente por fim ao fim a era em que os Estados Unidos agem praticando crimes contra civis inocentes em todo o mundo sob o pretexto da chamada "democracia" e "direitos humanos", somente a unidade internacional e revolucionária da classe trabalhadora não deixarão que sigam impunes esses crimes praticados contra ela pelos EUA e seus títeres regionais.


Notas


1) "A China diz que vai investir US $ 4 trilhões nos países do One Belt One Road Initiative (BRI), embora não diga até quando. Seus funcionários rejeitam irritadamente a comparação com o Plano Marshall que, dizem eles, foi um meio de recompensar os amigos da América e excluir seus inimigos após a Segunda Guerra Mundial. O BRI, eles se gabam, está aberto a todos. Sob valores atualizados, o Plano Marshall totalizou US $ 130 bilhões, em dólares correntes." (The Economist, 2016: "Our bulldozers, our rules: China’s foreign policy could reshape a good part of the world economy")