quinta-feira, 14 de maio de 2020

EXPANSÃO DO CONTROLE SOCIAL E NOVO CICLO DE ACUMULAÇÃO

A expansão do controle social e um novo ciclo de acumulação estão germinando da pandemia
Publicação do GPOSSHE



Estamos na transição para um outro ciclo de acumulação capitalista, um fenômeno relativamente novo, um ciclo que nasce através da maior catástrofe planetária desde a segunda guerra mundial. A impotência do capitalismo diante do Covid-19 vem criando muitas expectativas de que a tragédia seria um momento de renovação, que se abriria um período mais solidário, de capitalismo keynesiano, de estatizações, renda básica universal. As ilusões na regeneração do capitalismo pós-coronavírus têm como base material as medidas emergenciais tomadas por uma série de governos.

Essa foi e continua sendo a euforia de amplos espectros da intelectualidade de esquerda. Acredita-se que tudo isso seria possível sem uma luta tenaz da classe trabalhadora para impor um recuo na ofensiva burguesa, ofensiva que tem na sua vanguarda uma série de governos de extrema direita e filofascistas.



Intensificação do Trabalho e a Compressão dos Salários


Estabelecida a pandemia mundial, a lumpenização das camadas mais populosas do proletariado parece ter se tornado o plano das classes exploradoras. Os miseráveis pacotes de ajuda econômicas para trabalhadores informais, por alguns meses, apontam isso. Vale lembrar que a informalização é uma política predominante no mundo. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (2015), 60,7% da força de trabalho mundial não possui vínculos trabalhistas. Em muitos países, como no Brasil, a informalidade chega a metade da força de trabalho. Em outros países da Ásia, Africa e América Latina, a informalidade é ainda maior.

Durante a pandemia, o auxílio do governo Bolsonaro aos trabalhadores informais estabelecido foi de R$ 600,00, aproximadamente 100 dólares. Inicialmente Bolsonaro cogitou pagar 35 dólares, ou 200 reais. Em outros países, como a Tailândia, chega a 170 dólares por mês. O que é ainda muito pouco porque é bem menos que a média salarial dos próprios países. Por sua vez, essa própria média costuma ficar abaixo das necessidades vitais de uma família de trabalhadores. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos do Brasil, em março o salário mínimo necessário deveria ser de R$ 4.483,20 (aproximadamente 780 dólares).

O desespero de amplas parcelas da classe trabalhadora por conseguir receber a miséria de 600 reais, supera em duas ou três vezes o número de inscritos esperado pelo governo. 600 reais é pouco mais do que a metade dos R$ 1.045,00 de salário mínimo obrigatório para os trabalhadores formais. Passada a quarentena, com desemprego e subemprego bem maiores do que os atuais, que atingem, respectivamente, 13 e 30 milhões de trabalhadores, a classe trabalhadora é induzida a acostumar-se a sobreviver com metade ou menos do salário que recebia antes da pandemia.

Cria-se então um novo piso salarial mínimo, rebaixado, formal ou informalmente, porque em tempos de calamidade a anarquia capitalista aumenta. Os salários são comprimidos abaixo de seu valor, para o conjunto da classe e, em cada vez mais amplos setores, também pelos novos aplicativos tecnológicos.

Mais uma vez, aprofunda-se a superexploração da classe trabalhadora, sobre a qual escrevera Ruy Mauro Marini, quando os salários pagos são inferiores ao valor da força de trabalho, impedindo que essa classe se reproduza em suas condições normais. Também se aprofundará o grau de exploração do trabalho por novas ferramentas tecnológicas que prolongam a jornada e ocupam ao máximo os momentos do dia e da noite dos trabalhadores, agora com o trabalho também em casa. A intensificação do trabalho e a compressão do salário abaixo de seu valor são duas causas contra arrestantes para a queda da taxa de lucros, já apontadas por Marx em O Capital, utilizadas pelos capitalistas para evitarem ou saírem das crises há mais de 120 anos. De lá para cá, mediada pelas conquistas e derrotas da maioria explorada, a exploração e seus mecanismos se tornaram mais complexos. Obrigada a sobreviver e se adaptar com rendimentos bem abaixo do mínimo vital, a barbárie conduz a maioria dos seres humanos a viverem como uma sub-raça humana.


Fatalismo e Intencionalidade de Classe

Esse elemento perverso da superexploração do trabalho se combina com suspeitos procedimentos sanitários para o SARS-CoV-2. Por exemplo, o da suposta “imunização em massa”, adotado explicitamente pela Grã Bretanha até o momento em que o próprio primeiro ministro também contraiu a virose. A minimização da gravidade do problema, o descaso consciente, a negligência e o fatalismo com a perda de milhares de vidas, sobretudo da população trabalhadora, revela certa dose de intencionalidade. A pandemia, que vitima de forma desigual as classes sociais, é usada, objetivamente, como uma arma da guerra de classes. Se deseja sobreviver e viver, a classe trabalhadora de modo algum pode aceitar as previsões fatalistas de seus inimigos como “normal”, “inevitável” o elevado número de mortes. A classe não pode passivamente admitir seu padecimento e extermínio.
Falta razão e sobram ilusões nos que esperam que esses governos e Estados burgueses venham realizar medidas favoráveis a maioria da população. Essas ilusões se tornam verdadeiras alucinações diante do salve-se quem puder da nova crise financeira e da competição por quem parte na frente no novo ciclo de acumulação de capital. Foram esses governos e Estados que tornaram tão vulneráveis as condições de vida das massas laboriosas, com medidas ultraparasitárias contra as classes subalternas (eufemisticamente chamadas de neoliberalismo). A maior prova disso foi o colapso de quase todos os sistemas de saúde nacionais em menos de dois meses da nova virose.

Brutalismo, Coronocracia,...

Achilles Mbembe, que cunhou o termo “necropolítica”, já apontava antes da pandemia que caminhávamos para regimes que ele chamou de “Brutalismo”. Esse é o título de sua obra lançada no início de 2020. Segundo o filósofo camaronês, o projeto final do “Brutalismo” seria a transformação da humanidade em matéria e energia, quando todas as esferas da existência são transpassadas pelo capital e o ordenamento da sociedade é definido por uma mesma orientação de computação digital. Se ele está correto, a pandemia representa um salto ou uma aceleração nesse estado de coisas. Muitos analistas em todo mundo, provavelmente entre os primeiros esteve o jornalista Eshrat Mardi, do Tehran Times, têm usado o termo “Coronocracia” para se referir as medidas repressivas e centralizadoras.
O governo de Israel, no Estado que já possuía um caráter nazi-sionista contra os palestinos, encabeçado pelo o arqui-corrupto primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que enfrentaria julgamento por corrupção, aproveitou-se do momento para estabelecer medidas que ampliam a vigilância sobre os cidadãos, fechou, oportunamente, os tribunais (o Supremo Tribunal Federal israelense), ampliou a repressão sobre os palestinos, sem permitir qualquer ingerência, instituiu que o Exército sionista é a autoridade sanitária máxima, acima do Ministério da Saúde.
Na Hungria, Viktor Orbán passa a governar por decreto, criou um estado de emergência por tempo indefinido e ameaça com prisão de até cinco anos a quem publicar informações que contrariem as orientações do governo, que “obstruam ou evitem a proteção eficaz da população”.

No Peru, o Congresso aprovou uma lei que dá salvo-conduto a policiais e militares que ferirem ou matarem pessoas sob a justificativa de infração das ordens de isolamento social. Algo similar ao tal “excludente de ilicitude” para policiais, defendido pelo ex-ministro Sérgio Moro e por Bolsonaro. Os agentes da repressão teriam plenos direitos a executar a população sob justificativas subjetivas como a de “surpresa, medo ou violenta emoção”. Trump fez um giro de 180 graus, do desdém com a pandemia para definições como: “absolutamente crítico”, “inimigo invisível, incrível”. O presidente dos EUA recomendou uma injeção de desinfetante no corpo seria benéfica para matar o covid-19. Desesperadas e ignorantes, dezenas de pessoas seguiram a recomendação de Trump. O centro de controle de envenenamento de Nova York recebeu 30 chamadas relacionada ao uso de desinfetante nas 18 horas seguintes à sugestão do presidente.

Quando trabalhadores se fragilizam, seus inimigos de classe, os patrões, arrancam-lhes o couro. Sem uma resistência organizada e vitoriosa dos povos oprimidos e da classe trabalhadora, as perspectivas apontam para um estágio severo da barbárie que vivemos. A situação da classe trabalhadora, que já era precária, agora é globalmente catastrófica. A “nova grande depressão” (terminologia do jornalista Pepe Escobar) vem fechando milhões de empresas. O desemprego disparou. Segundo as estimativas otimistas da OIT 25 milhões de empregos serão perdidos. Mas só nos EUA, cujo governo Trump comemorava o “pleno emprego”, já chega a quase 20% de desempregados. Se isso é assim no país mais rico do planeta, como será nos demais? Mesmo a França, representante do sexto poder econômico mundial, foi incapaz de defender seus cidadãos do vírus, já morreram 23 mil franceses, 10% de todas as mortes do mundo pelo covid-19 até o momento.

Nesse quadro depressivo e de oferta da mercadoria força de trabalho há uma queda brutal dos salários dos trabalhadores com carteira assinada e funcionários públicos. Todavia, são muito, muito piores, as perspectivas de barbárie para os precarizados de toda ordem, imigrantes, mulheres.

Os governos vêm se aproveitando da pandemia para impor verdadeiros estados de sítio contra as massas, para escraviza-las e para aumentar o controle social preventivo diante de rebeliões latentes. Todos sabem que o povo pobre e explorado está sendo arrastado rapidamente para uma situação de luta desesperada pela vida. Assim, as medidas populistas não regeneram os sistemas de saúde nem recompõem as condições de vida da classe trabalhadora. De fato, o capital se aproveita da queda brutal das condições de vida do trabalho para exterminar uma parte do exército de desempregados excedente, militarizar a vida social e ampliar o Estado policial.


O Manifesto “Antiautoritário” dos Neoliberais

Nesse cenário, cerca de 150 intelectuais neoliberais, oportunistas de direita, em uma lista encabeçada por ex governantes, aspirantes a voltar ao governo de seus países na região ibero-latino-americana lançou o manifesto “Que la pandemia no sea un pretexto para el autoritarismo”, organizado pela "Fundación Internacional para la Libertad" (FIL), presidida por Mario Vargas Llosa, ex-escritor de esquerda, convertido em político neoliberal do Perú. O manifesto também foi assinado pelos ex-presidentes da Espanha (Aznar); Argentina (Macri), México (Zedillo e Vicente Fox); Colômbia (Uribe); Uruguai (Lacalle e Sanguinetti); El Salvador (Cristiani) e Paraguai (Franco). Segue-se uma lista de empresários, economistas, e instituições golpistas como o Instituto "Mises" do Brasil ou do venezuelano “Vente”, um partido de oposição que tenta sem sucesso dissociar sua imagem do narcotráfico.

O manifesto critica:

“En lugar de algunas entendibles restricciones a la libertad, en varios países impera un confinamiento con mínimas excepciones, la imposibilidad de trabajar y producir, y la manipulación informativa [...] han suspendido el Estado de derecho e, incluso, la democracia representativa y el sistema de justicia [...] en las dictaduras de Venezuela, Cuba y Nicaragua la pandemia sirve de pretexto para aumentar la persecución política y la opresión”.

Obviamente que se trata de um clube de cartas fora do baralho. Macri, por exemplo, está muito longe de voltar a ser presidente da Argentina. Nessa e na próxima encarnação. Mas, quem sabe? Muita coisa tende a mudar (para pior) no pós-pandemia. Além do perfil dos assinantes, o texto não deixa dúvida de que não passa de um manifesto de capatazes dos EUA, e, mais provavelmente, da fração da burguesia imperialista enquadrada dentro do Partido Democrata. No texto do manifesto neoliberal, os governos nacionalistas como Venezuela e Nicarágua, e o Estado operário cubano são atacandos como ditaduras. Nenhuma citação as verdadeiras ditaduras, instituídas por golpes de Estado no continente latino americano, como recentemente ocorrido na Bolívia, onde as eleições presidenciais foram suspensas por tempo indeterminado muito antes do início da pandemia.

Esses senhores, como Aznar, e seus partidos, como o PP, foram escorraçados do poder pelo desgaste político junto a população de seus países, devido as suas políticas de opressão neoliberal e de saqueio do Estado, privatizações e programas de desvios de recursos públicos para as máfias privadas, das quais eram representantes políticos. Foram os principais responsáveis por vulnerabilizar os sistemas de saúde e as condições de vida das massas laboriosas, agora semi-indefesas diante da pandemia. Agora, esses mesmíssimos senhores, tentam se apresentar como alternativa aos atuais governos, pegando carona na insatisfação popular que sabem que vai explodir em breve.

A direita tradicional reorganiza-se em nome das liberdades democráticas e civis e contra o autoritarismo. O autoritarismo crescente de fato é um movimento oportunista de vários governos por centralizar poder político. Bolsonaro mobiliza sua base neonazista e ameaça com o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do parlamento (como Benjamin Netanyahu fez em Israel) mas por sua fragilidade política não vem tirando todo proveito possível do momento para suas aspirações ditatoriais. Assim como o manifesto, o bolsonarismo é contra a quarentena e acusa aos que a defendem medida contra a pandemia de "conspiradores para impor uma ditadura globalista comunista". Bolsonaro poderia tranquilamente também assinar esse manifesto neoliberal encabeçado por Vargas Losla. Mas, certamente a maioria dos assinantes não desejariam a adesão do neonazista brasileiro por não quererem ser rotulados de autoritários e porque exatamente ao executar o programa político e econômico do manifesto, tornou o Brasil o novo epicentro mundial da pandemia.

Distintas frações burguesas disputam a barbárie que resultar da associação pandemia-crise econômica. Cada fração se relocaliza, elabora o programa estratégico que lhe for mais conveniente, move-se, rearticula-se e faz a agitação correspondente a sua estratégia. A maioria da população mundial, as principais vítimas desse processo, precisamos realizar movimentos semelhantes, mas no sentido inverso, contra as classes exterminadoras e pela humanidade.

A tragédia já está acontecendo, dela não temos dúvida. A pergunta agora é o que fazer da tragédia que o sistema mundial do capital nos meteu. De um lado, a morte, a superexploração e a opressão brutais. Do outro lado, a luta revolucionária pelo socialismo, pela sobrevivência e por uma vida digna para a maioria.